Crítica | Shiva Baby (2020)

Nota do filme:

Momentos constrangedores, perguntas intimidantes e fofocas que ninguém pediu já fazem parte do combo das tradicionais reuniões familiares. Não importa qual relação você tenha com seus entes queridos, absolutamente ninguém está imune às saias justas que enfrentamos no Natal e em alguns aniversários. Foram essas situações tão comuns que serviram de inspiração para que a diretora estreante Emma Seligman construísse o caos anunciado de seu debut, o longa Shiva Baby, grande responsável por elevar esses constrangimentos à décima potência e se tornar o queridinho das plateias do Festival de Toronto de 2020.

Ainda que a programação contasse com títulos como Pieces of a Woman (2020), Meu Pai (2020) e, o vencedor do Oscar 2021, Nomadland (2020), foi a comédia independente quem chamou atenção ao usar a tragédia como pretexto para uma sucessão de pequenas confusões de fazer qualquer um rir de nervoso. Seligman já tinha uma boa história para contar quando apresentou seu curta homônimo no mesmo festival, no ano anterior. Foi então que, recém-formada na escola de artes da Universidade de Nova York, se dedicou a ampliar tanto a narrativa quanto a claustrofobia de sua história e o resultado é um dos longas mais interessantes do ano.

Shiva Baby, que chegou ao Brasil na última sexta-feira (11) pela MUBI, acompanha um dia na vida de Danielle (Rachel Sennott), uma jovem-adulta prestes a se formar na faculdade, mas que não tem ideia do que fazer com sua vida. Judia, vegetariana e bissexual, ela vive sozinha às custas dos pais, mas banca alguns pequenos luxos trabalhando como “babá”, seu emprego de fachada para esconder que, na verdade, é uma sugar baby. No dia em questão, ela é obrigada a comparecer junto com os pais (Polly Draper e Fred Melamed) ao shiva (funeral) de um amigo da família, onde dá de cara, não apenas com sua ex-namorada (Molly Gordon), mas, também, com seu tal sugar daddy (Danny Deferrari).

É a partir desse momento que o filme se torna um pesadelo dos mais assustadores. Com muita vergonha alheia, acompanhamos a protagonista passar pelas mais diversas situações, todas provenientes de uma mistura perfeita entre comédia e tragédia social. O combo consiste numa porção de tios e conhecidos bizarros questionando suas decisões de vida, sua ex-namorada perfeita ainda ressentida sobre algo que você fez no passado e a presença inconveniente de seu sugar daddy secreto, como se não bastasse, acompanhado da esposa (Dianna Agron) e da filha. Para uma pessoa menos confusa do que Danielle, isso já seria algo complicado de lidar, então daí você pode imaginar como alguém tão inseguro e mentalmente instável como ela levou a situação.

Ao longo de pouco mais de uma hora, Shiva Baby desenvolve os pequenos conflitos de Danielle não necessariamente chamando atenção para o jeito como ela ganha dinheiro, mas sim criando tensão sobre o modo como a família a pressiona sobre o futuro e sua desconexão com a religião judaica. Todo o filme se desenrola dentro da casa onde está acontecendo o funeral e por mais familiares que sejam aquelas pessoas, para ela, tudo se torna tão confuso e claustrofóbico que vemos nitidamente como suas escolhas a fizeram uma estranha ali dentro.

No meio de tudo isso, o mais interessante é que o longa não pretende julgá-la por essas escolhas. Muito pelo contrário. Ao caminhar entre doses de humor ácido, autodepreciação e falso moralismo, Seligman nos obriga a encarar nossas próprias inseguranças e conflitos internos através da piada. Encontrando graça em situações absurdas, Shiva Baby ri das desgraças de sua protagonista que, no fundo, são nossas também. A forma como ele é conduzido procura fazer com que o espectador não apenas sinta afinidade por Danielle, mas que também sofra do mesmo modo que ela está sofrendo.

Como se reproduzisse uma enorme crise de ansiedade, tanto roteiro quanto direção trabalham para criar um ambiente cada vez mais incômodo e claustrofóbico. A câmera inquieta está quase o tempo todo enfiada no rosto dos atores e a montagem é propositalmente frenética em certos momentos. O violino à la Hitchcock da trilha sonora arremata a aparência assustadora da história, que poderia ser apenas uma comédia ácida como Fleabag (2016-2019) se não fosse a tendência ao horror com ares de Mãe! (2017), de Darren Aronofsky.

É provável que o teor absurdo do projeto não agrade todo mundo. Parece impossível que uma jovem precise lidar com tantas questões num espaço tão curto de tempo, mas a graça de Shiva Baby é justamente essa: explorar os efeitos psicológicos que essa quantidade de pressão pode exercer em sua protagonista. Além dos méritos técnicos, esse resultado só foi possível por causa da ótima atuação de Sennott como Danielle, mentalmente exausta, mas com um excelente timing cômico. Sua dinâmica com Molly Gordon dá abertura para momentos bem engraçados, mas os destaques mesmo são Draper e Melamed, protagonizando as cenas mais hilárias do filme.

Mesmo que, depois das tantas, algumas situações se repitam sem muita sutileza e se tornem cansativas, é sensacional embarcar nessa grande estufa de pesadelos juvenis e se deixar envolver. Os problemas de ritmo estão lá, mas Shiva Baby consegue quebrar convenções das comédias clássicas e fisgar o espectador com um humor sarcástico delicioso. Sem se perder em conceitos mirabolantes, o longa é fiel à sua intenção de ser simples e divertido e termina proporcionando momentos de autêntico desconforto. Uma comédia inconveniente e constrangedora que 2020 nem imaginava estar precisando.