Nota do Filme:
Uma tarde quente na cidade de Orlando, Estado da Flórida, em que todas as crianças estão nas férias de verão, qualquer brincadeira parece ser uma incrível mudança na rotina – que, a essa altura, já está mais do que entediante. Moonee (Brooklynn Prince) e Scooty (Christopher Rivera) vivem em um hotel de baixo custo perto de um dos parques da Disney, cada qual com sua mãe: a de Scooty trabalha em uma rede de lanchonetes, enquanto a de Moonee, Halley (Bria Vinaite), vive de bicos, cada hora um diferente.
Após uma competição de quem cuspia mais longe, Moonee e Scooty são obrigados a limpar um dos carros atingidos pela arte. Durante a limpeza, eles conhecem sua mais nova melhor amiga, Jancey (Valeria Cotto), que vive em um hotel vizinho ao deles. Os três passam os dias aprontando, gritando e correndo junto das outras crianças que vivem por ali. O longa passa um pouco a sensação de repetitividade, pois, de fato, os dias não mudam em muita coisa, já que não há muito o que se fazer por ali. A repetitividade não chegou a me incomodar, mas senti que ela estava ali por algum motivo.
Os dias da nossa protagonista, Moonee, são, como sabemos, repetitivos: ela passa boa parte do dia na companhia da mãe, que, por não ter emprego fixo, não se obriga a ter uma rotina de responsabilidades: às vezes limpa o quarto, às vezes não; às vezes lava as roupas, às vezes não, e assim por diante. A relação entre Moonee e Halley é o tipo de laço que provoca sentimentos agridoces em quem vê a relação de fora: ao mesmo tempo que há muito amor da mãe pela filha, há algo de muito errado ali, e dá vontade de proteger a menina a todo custo.
Tudo isso também gera um outro sentimento, que é a vontade de ajudar aquela mãe, que parece não saber muito bem o que está fazendo. Ela trata a filha de igual para igual, e não como educadora. Aliás, educação é a última preocupação desta mãe. É muito difícil julgar, e a intenção do diretor, Sean Baker, era justamente essa: apresentar os fatos, sem julgamentos. Formar uma opinião sobre a situação fica mais difícil também por outro motivo: os posicionamentos de câmera. Grande parte dos frames são mantidos no campo de visão das crianças, o que traz uma perspectiva muito mais leve e divertida de tudo o que acontece.
Assim como em Tangerine (longa filmado por Baker inteiramente em iPhones 5s no ano de 2015), o filme é marcado por cores fortes e muito saturadas, remetendo a um ambiente quente, potencializado pelas inúmeras cenas das personagens tomando sorvete e nadando na piscina. Esse combo (cores quentes somadas à alta saturação) tem esse poder sobre o telespectador, o que ajuda – e muito – a construir uma relação com a história ali contada: crianças nas férias de verão, entediadas e encaloradas, procurando preencher o seu dia da forma mais divertida possível.
As cores ainda trazem outros contrastes à tona: cores alegres, mas em um lugar povoado por pessoas com vidas difíceis e tristes; lugar turístico e rico, mas com moradores pobres e sofridos; a magia dos parques tão perto fisicamente, mas, ao mesmo tempo, tão longe financeiramente. Outro detalhe é a renovação externa do hotel, que é pintado inteiro de roxo e bege pelo zelador, Bobby Hicks (Willem Dafoe). A renovação externa não muda o conteúdo interno, e novamente vemos uma tentativa de vender o tão conhecido sonho americano, que, como sabemos e já discutimos na resenha de Nomadland, é uma falácia.
Além do fracasso do american dream, outras questões importantes são tratadas pelas crianças em seu dia a dia – e aqui faço um paralelo inevitável com o filme Pelo Malo, onde também assistimos a crianças lidando de forma madura e inocente com situações difíceis inseridas em seu cotidiano. Em Projeto Flórida, vemos um pouco de agressões verbais e físicas, uso de drogas e até crimes sendo tratados com a pureza que só o olhar das crianças pode exprimir.
A fim de cuidar do hotel, Bobby acaba também cuidando de seus moradores, com os quais vive uma relação puramente paternalista, onde que a prioridade é, acima de tudo, a ordem do ambiente. Para garantir que tudo saia conforme o dono exige, o gerente acaba organizando não só a rotina do hotel, mas também a vida dos moradores, que com frequência extrapolam os seus direitos de uso. Vale o destaque para a atuação sempre incrível de Willem Dafoe, principalmente na cena em que ele interrompe uma de suas manutenções externas para zelar pela segurança das crianças que moram ali.
Falando em crianças, outro destaque – o maior de todos neste filme – vai para Brooklynn Prince, que chama toda a atenção para si nas cenas em que participa. Até mesmo dividindo palco com Willem Dafoe a pequena consegue ser o foco, e ganha o público de forma definitiva com a sua atuação. A sua mãe no longa também não fica para trás: Bria Vinaite não era atriz antes do longa, e foi achada por Baker pelo aplicativo Instagram. Essa experiência de escalar pessoas comuns para filmes já deu certo outras vezes, como em Cidade de Deus, de Fernando Meirelles.
Em Projeto Flórida conhecemos uma Orlando invisibilizada, e, como diz a brasileira (muito bem retratada, diga-se de passagem): “isso aqui não é nem um hotel, isso é um projeto!”. De fato, para os turistas brasileiros que povoaram os parques por muitos anos (em tempos em que ainda podíamos aglomerar em parques de diversão), a Orlando que eles querem ver não é nada daquilo que vemos no filme. Mas, como acontece com mais frequência do que deveria, a vida não é como deveria ser, e o filme escancara isso para nós, os telespectadores, e nos conquista com essa história imperfeita e cheia de verdades difíceis de encarar.
Sou muitas em uma só. Como já dizia o Gato da Alice: We’re all mad here. 🙂