Crítica | Pelo Malo (2013)

Nota do Filme:

Tudo começa por causa de uma foto para a escola: enquanto sua amiga (María Emilia Sulbarán) queria uma foto de miss, Junior (Samuel Lange Zambrano) queria parecer-se com um cantor famoso, de cabelo liso, na tão esperada foto que tirariam para o início do novo ano letivo. As duas crianças estão de férias e vivem em um complexo residencial de classe média baixa, daqueles que contam com muitos apartamentos conjugados em um espaço pequeno, e em que todo mundo conhece todo mundo. Nesse ambiente por vezes conturbado, ambos crescem e dividem as mais diversas experiências e dificuldades no dia a dia.

Junior vive com sua mãe, Marta (Samantha Castillo), uma mulher séria e introspectiva, e seu irmãozinho, que ainda é um bebê. Marta conta com a ajuda de uma vizinha para cuidar dos filhos enquanto tenta se reestabelecer no mercado de trabalho, já que foi mandada embora novamente. Quando se vê em uma situação na qual não pode nem mais pagar a vizinha para cuidar dos filhos, ela recorre à ex-sogra, Carmen (Nelly Ramos), de quem não é lá muito fã, mas serve para ajudá-la quando precisa.

A relação de Junior com a avó é uma das mais belas que já vi no cinema. Ela o incentiva a ser quem ele realmente é, sem tirar nem por. Ambos cantam e dançam juntos, e a avó alisa o cabelo do menino sempre que ele pede. Isso incomoda muito a mãe, que acaba afastando-os assim que consegue um emprego e pode voltar a pagar a vizinha. Junior gosta da avó, mas tem medo de seguir seus conselhos e acabar irritando (mais ainda) Marta. O menino, como diz a avó, só quer se sentir bonito, poder cantar, dançar e ter o cabelo liso, mas isso ataca a mãe em pontos que sequer imaginamos no começo.

Marta é, sem dúvidas, uma mulher sofrida, que carrega muitas mágoas. Ela as desconta em seu filho, que parece não se encaixar muito nos padrões que ela gostaria. Neste ponto podemos analisar uma segunda camada do filme: além da vida difícil que ela e os filhos levam, devemos levar em consideração o fato de que Marta perdeu o marido muito cedo, e se viu sozinha com os dois filhos para criar. O filho mais velho lembra muito o marido, o que a faz projetar nele os seus sentimentos de raiva e frustração, castigando-o simplesmente por ele ser quem é.

Algumas poucas cenas de carinho entre os dois são vistas ao longo da trama, e esses pequenos momentos acalentam o coração do espectador, que cria esperanças dessa mãe começar a tratar o menino com todo o amor que ele merece. Porém, a felicidade – tanto nossa quanto dele – dura pouco: ela volta a ser a carrasca de sempre em poucos segundos.

Um dos pontos fortes neste filme é podermos ver o mundo pelo olhar das crianças: para eles, tudo o que importa é como sairão na foto e como conseguirão dinheiro para isso. A pobreza, as dificuldades, a desigualdade social que a Venezuela vive na época, nada disso importa. Os dois chegam a conversar sobre assuntos complexos, desde o amor até o medo de serem estuprados, e a leveza que lidam com isso é algo que só a inocência de ser criança permite.

A realidade, no entanto, é dura: Junior sofre preconceito da própria mãe diariamente. Marta chega a leva-lo mais de uma vez ao médico para perguntar o que há de errado com o menino. Vemos que Junior tenta a todo custo se reprimir, buscando o tão sonhado amor materno. Mas, por mais que ele tente se esconder, é impossível deixar de ser quem se é só porque alguém assim deseja. É muito triste ver toda essa autocondenação na tentativa de ser, enfim, amado, e é inevitável que façamos um paralelo com nossas próprias vidas: até onde já fomos para nos sentirmos amados? Do que já abrimos mão em nossas vidas para que pudéssemos nos encaixar em padrões definidos por outras pessoas?

Mariana Rondón, diretora do longa, utiliza um olhar sensível para mostrar, de forma muito sutil, o desinteresse de Junior pelas atividades com outros meninos (no caso, o futebol e as armas) e a preferência pela companhia da amiga a todo o tempo. O menino nutre interesse por outras coisas, como, por exemplo, pelo jovem que cuida da banca de jornais, o que incomoda muito a mãe, mas, para Junior, é algo natural e que lhe traz alegria (e até certa ansiedade).

Seguindo uma das sugestões do médico, Marta se envolve com seu ex-chefe na tentativa de dar uma referência masculina ao filho. A experiência, no entanto, serve mais para ela do que para ele, já que nem todas as referências do mundo o fariam desejar um relacionamento como os que a mãe cultiva. A mãe tenta – de uma forma bruta e carinhosa ao mesmo tempo – mudar o filho, a fim de protege-lo das dificuldades que o mundo pode lhe causar.

A relação de Junior com seu cabelo é de amor e ódio, já que ele quer alisá-lo, mas não permite que a mãe o corte, para livrá-lo, enfim, dos cachos. Essa relação entre ele e o cabelo é, de certa forma, muito semelhante à relação que a mãe tem com ele: ela se incomoda com ele, mas não o deixa ir embora; ela quer afastá-lo, mas também quer protegê-lo das dores do mundo. Essa é, basicamente, uma relação norteada pela ignorância e pelo medo materno, que não consegue lidar com os próprios sentimentos, muito menos com os conflitos e dificuldades de sua família.

Em Pelo Malo vemos uma Venezuela em crise, famílias disfuncionais, amor e, mais ainda, desamor. É um daqueles filmes que nos impacta profundamente, que traz as mais diversas reflexões, e que sentimos vontade de compartilhar com outras pessoas o que vivenciamos ali. A direção sensível e fluida de Mariana Rondón recebeu indicações – e venceu várias – em diversos festivais. O filme está disponível no Prime video, plataforma de streaming da Amazon.