Crítica | Polytechnique (2009)

Nota do Filme:

Se eu tiver um filho, o ensinarei a amar.
Se eu tiver uma filha, lhe direi que o mundo é dela.

Por volta das 16h00 do dia 06 de dezembro de 1989, Marc Lépine, de 25 anos, entrou na Escola Politécnica da Universidade de Montreal e cometeu o maior tiroteio em massa realizado em uma instituição educacional da história do Canadá. Armado com uma espingarda semiautomática adquirida em uma loja de artigos esportivos e uma faca de caça, atacou 28 pessoas, assassinando 14 delas e cometendo suicídio em seguida.

Todas as vítimas de Lépine eram mulheres (doze estudantes de engenharia, uma estudante de enfermagem e uma funcionária), e isso não foi coincidência: o atirador fez questão de separar estudantes por gênero em uma sala de aula, ordenou que os homens saíssem e, após dizer que estava lutando contra o feminismo e que odiava feministas, iniciou os disparos. O Massacre da Escola Politécnica, como ficaria conhecido, tratou-se, portanto, de um dos maiores atos de terrorismo misógino e feminicídio que se tem notícia. Desde 1991, o 06 de dezembro marca, no Canadá, o Dia Nacional de Memória e Combate à Violência Contra a Mulher. No mês em que o ataque completa 30 anos, e como forma de manter viva a lembrança para que nunca se repita, vale falar sobre o longa Polytechnique, que retrata os eventos do fatídico dia.

Dirigido pelo sempre competente Denis Villeneuve (A Chegada, O Homem Duplicado, Blade Runner 2049), o filme possui uma cena de abertura atípica e que pega o espectador de surpresa – algo apropriado tendo em vista o acontecimento retratado, que foi igualmente atípico e surpreendente – para em seguida nos apresentar ao atirador (Maxim Gaudette), que se mostra um sujeito visivelmente problemático desde o primeiro segundo em que surge em tela, o que é eficiente em termos narrativos, pois economiza um tempo (a produção tem apenas 77 minutos) que pode ser empregado mostrando o cotidiano de alguns estudantes, em especial Valérie (Karine Vanasse), Stéphanie (Evelyne Brochu) e Jean-François (Sébastien Huberdau).

O personagem Jean-François, a propósito, é fundamental para que o longa justifique uma de suas principais teses: os horrores do atentado não seriam sentidos apenas no dia de sua realização ou nas semanas seguintes, mas estariam presentes para sempre nas vidas dos sobreviventes e das pessoas próximas às vítimas. E – o que é mais trágico – até mesmo as mortes não se restringiram ao dia 06, pois alguns sobreviventes cometeram suicídio posteriormente, por não conseguirem conviver com a lembrança, a sensação de impotência e até mesmo o sentimento de culpa por não conseguirem impedir o que houve.

Por sua vez, o roteiro optou por não utilizar nenhum nome real, empregando personagens fictícios na representação do ataque. Porém, uma escolha interessante foi não dar nome ao personagem de Gaudette, sendo que este aparece nos créditos apenas como “Le tueur” (“O assassino”). Ao fazer isso, o texto repudia a tese (sempre resgatada em tiroteios em massa) de que o jovem era um “lobo solitário”, um “garoto perturbado”. Não; Lépine (que teve acesso fácil a armas de fogo) foi fruto de uma cultura que lhe disse, desde cedo, que ele tinha direito a tudo e que, por exemplo, mulheres cursando engenharia estariam roubando algo que lhe pertencia. Ele foi o assassino, evidentemente, mas poderia muito bem ter sido qualquer comentarista de portal de 2019 em seu lugar.

O roteiro também acerta em mostrar como a misoginia enraizada na sociedade não se manifestou apenas no ataque; observe-se, por exemplo, o sexismo vivenciado por Valérie durante uma entrevista de estágio. Note-se como o entrevistador que diz frases como “é raro ver mulheres em engenharia mecânica, engenharia civil é mais fácil para criar uma família e não desistir” sequer se dá conta dos absurdos que está proferindo. Ou como Jean-François, embora não seja mau sujeito, recorre às amigas para pedir anotações.  

Outros detalhes contribuem para tornar a narrativa mais rica, como a fotografia em preto e branco e a trilha sonora. No primeiro caso, serve tanto para ilustrar a ausência de cor daquele dia como para simbolizar como Lépine via o mundo. No segundo caso, é eficiente o uso de sons distorcidos ao fundo nas cenas com o assassino, mais uma vez demonstrando o estado de sua cabeça. Também é digna de menção a presença de Guernica como uma espécie de mau presságio. Por fim, a cena que mostra o corpo do atirador, cujo sangue se une ao de uma vítima no chão, é uma elegante metáfora de como essa era a única maneira que ele tinha de estabelecer alguma conexão com o gênero feminino. 

Pode-se discutir até que ponto a existência de um filme com fins comerciais sobre um evento trágico é ética e respeitável, ou se, por outro lado, obras assim são essenciais para que se mantenha viva a lembrança do que houve. De qualquer modo, é inegável que o tratamento dispensado às vítimas pelo filme é sensível e respeitoso, resumido na bela relação entre Valérie e Stéphanie. E o fato de a primeira tingir seu cabelo de loiro no futuro, além de profundamente emocionante, deixa claro que uma das mensagens do filme é a importância de que permaneça a memória daquelas 14 jovens que, cheias de sonhos e expectativas, tiveram que perder suas vidas por simplesmente frequentarem um mundo que não era (e para muitos ainda não é) considerado delas.           

Anne-Marie Edward, Anne-Marie Lemay, Annie St-Arneault, Annie Turcotte, Barbara Daigneault, Barbara Klucznik Widajewicz, Geneviève Bergeron, Hélène Colgan, Maryse Laganière, Maryse Leclair, Maud Haviernick, Michèle Richard, Nathalie Croteau e Sonia Pelletier.

Que seus nomes jamais sejam esquecidos.