Crítica | Pobres Criaturas (Poor Things) [2023]

Nota do Filme:

“Então você deseja se casar comigo ou me matar? É essa a proposta?”

Bella Baxter

Em Pobres Criaturas, seguimos a vida de Bella Baxter (Emma Stone), que foi trazida de volta à vida pelo cientista Dr. Godwin Baxter (Willem Dafoe). O método de ressucitação consistiu em retirar o cérebro de um feto e inserir em um corpo recentemente morto, motivo pelo qual a protagonista age de modo tão peculiar, se desenvolvendo à medida que conhece mais do mundo.

O roteiro da obra foi baseado no livro de mesmo nome do escritor Alasdair Gray. Com roteiro de Tony McNamara e direção de Yorgos Lanthimos, velhos conhecidos por trabalharem juntos em A Favorita, temos aqui um dos mais interessantes filmes de 2023 (considerando a distriubuição internacional).

Pobres Criaturas se passa em uma versão steampunk da Era Vitoriana, na qual acompanhamos Bella desde o seu nascimento até a sua eventual emancipação. É fácil perceber como o cenário uma história do gênero pode ressoar conosco, afinal, trata-se de uma mulher ainda em crescimento, mentalmente falando, mas que já tem toda a sua fisionomia plenamente desenvolvida.

Trata-se, portanto, de uma cenário particularmente criativo, com o design de fundo que em muito se assemelha ao Expressionismo Alemão, em especial ao clássico Metrópolis, de Fritz Lang. Os prédios altos, em padrões tortos e pouco usuais são complementados pelo excelente figurino, que funciona como um farol em meio ao caos, para que a audiência não se perca. A estética colabora para criar um ambiente quase saído de um sonho.

Afinal, a porta de acesso à história do espectador é a protagonista, uma mulher ainda em desenvolvimento mental, de modo que o que vemos, e como vemos, se relaciona diretamente à sua percepção. Se tudo nos parece exótico, assim o é, pois, também parece exótico à ela, que sai de casa pela primeira vez no decorrer da obra, razão pela qual a percepção do espectador dialoga com a percepção da personagem.

Além do figurino, Yorgos se utiliza do progresso de Bella para, também, ancorar os espectadores no longa, para que não se percam na imensidão dos cenários etéreos ao fundo. Isto porque, a história gira em torno de algo que é facilmente relacionável, em que pese a representação fantástica: a relação da sociedade com o desenvolvimento feminino, em especial quanto ao sexo, e como isso é visto como transgressão às normas sociais.

Essa evolução tem início, justamente, quando ela escapa do seu quase cativeiro, imposto pelo seu criador, Godwin – inteligentemente chamado de “God” no decorrer do filme por Bella, cuja tradução é, literalmente, Deus. Aqui, vemos talvez o maior paralelo do filme, com o clássivo Frankenstein. Em Pobres Criaturas, porém, temos uma relação muito mais recíproca entre criador e criatura, uma vez que o Dr. Baxter se vê um pouco na sua criação, tendo sido, ele próprio, feito de cobaia pelo seu próprio pai.

Poder-se-ia dizer, inclusive, que o cativeiro que impôs à Bella é o seu meio de tentar protegê-la, justamente por ele ter sido tão ferido por aquele que deveria protegê-lo. Excessivo? Sem dúvidas. Errado? Com certeza. Todaiva, trata-se do desenvolvimento pelo qual o personagem tem que passar. Abrir mão daquilo que criou, deixá-la se desenvolver livremente. Não se trata, portanto, de um tirano que busca brincar com vidas.

Percebemos de plano, então, o modo como relações com o sexo oposto moldam a protagonista, afinal, Godwin é facilmente visto como sua figura paterna. Seu próximo encontro com um homem, na figura de Max McCandles (Ramy Youssef), faz com que se sinta desejada sexualmente. Entretanto, é com Duncan Wedderburn (Mark Ruffalo) que ela tem o seu maior embate.

Duncan se vende para Bella como alguém livre, como alguém que também não se prende às determinações da sociedade. A faceta, porém, apenas dura enquanto detém todo o poder na relação. À medida que Bella se desenolve e descobre novos aspectos da vida, a balança de poder deixa de lhe favorecer, revelando a sua real identidade, algo muito menos seguro de si do que originalmente demonstrava.

Há um comentário feito por Lanthimos acerca do poder masculino, e como, em Pobres Criaturas, parece existir tão somente à medida em que consegue suprimir o sexo oposto. A evolução da protagonista em muito reforça essa questão, não à toa há tanta ênfase na sua emancipação sexual.

Isto é, uma vez que a fisiologia da personagem é aquela de uma adulta, a sua mente, em descompasso com o seu corpo, deve entender como navegar pela sua sexualidade. Todavia, a carência de pudor, tão comum àqueles em desenvolvimento, é incompatível aos tabus sociais referentes a sexo.

Nessa seara, é impossível deixar de elogiar a excepcional performance da Emma Stone, que traz uma Bella Baxter cheia de trejeitos e consegue, de maneira crível, trazer à vida uma difícil representação de uma mulher feita fisicamente, mas que ainda deve crescer mentalmente. Há muito que poderia dar errado, contudo, a atriz jamais se torna caricata, pelo contrário. Há um quê de honestidade na protagonista, justamente pela sua falta de constrangimento, que acaba por atrair a todos.

Willem Dafoe convence, como sempre, trazendo nuances a um papel que, em mãos menos competentes, poderia ser extremamente desinteressante. Quanto ao Mark Ruffalo, porém, entende-se que acaba sendo a performance mais fraca do longa, mas jamais de modo a prejudicar a experiência.

Pobres Criaturas, então, consegue nos cativar, encantar e, mais ainda, nos fazer rir dos absurdos que ocorrem em tela. Yorgos Lanthimos demonstra, com constância, ser um dos diretores mais autorais da atualidade, e esse filme não é exceção, alcançado o hype criado pela estrondosa recepção após o seu lançamento. Um dos melhores do ano, sem dúvidas.