Nota do Filme:
É absolutamente encantador assistir a veterana Marcélia Cartaxo dar vida à personagem homônima de Pacarrete, longa de estreia do cineasta cearense Allan Deberton, que entrou recentemente para o catálogo da Telecine. Ela grita, xinga, dança ballet, esbanja seu francês, lava a calçada, chora a dor de ser esquecida e deixa o espectador admirado com tanto talento. Hoje, Marcélia não é mais a jovem que arrebatou plateias com sua Macabéa, de A Hora da Estrela, mas, aos 57 anos, volta a interpretar uma protagonista tão marcante quanto a de Clarice, e que a eterniza de vez como uma das maiores atrizes do cinema nacional.
Natural de Russas, no interior do Ceará, Deberton concebeu o filme a partir de memórias da sua infância e de relatos de pessoas da cidade que conviveram com a famosa Maria Araujo Lima ー mais conhecida como Pacarrete ー, que viveu como bailarina profissional e professora de dança, educação artística e educação física em Fortaleza, mas que passou suas últimas décadas de vida tida como louca. “As pessoas usavam [o nome Pacarrete] para dizer que algo era diferente, doido. Só depois que ela faleceu que eu soube que significava margarida em francês, que era uma flor que ela gostava de usar no chapéu. Isso foi o suficiente para perceber que, durante a minha vida inteira, eu não sabia quem ela era”, disse Deberton em entrevista à Folha de São Paulo.
Depois de doze anos se debruçando sobre a história dessa mulher, nasce o longa que, entre homenagear uma figura excêntrica e buscar sua redenção, celebra a arte como veículo de transformação e progresso. De louca, Pacarrete se transforma num ícone incompreendido, uma mulher que ia na contramão por não se conformar que as pessoas à sua volta pudessem reduzir suas experiências de mundo a tão pouco. Tão real quanto a solidão de se sentir presa num universo que lhe parecia completamente estranho era sua vontade de mudar a comunidade, e, felizmente, nenhum apelido a impediu de tentar.
No longa de Deberton, Russas está às vésperas de completar 200 anos e prepara um grande festejo. Para participar das celebrações, Pacarrete (Cartaxo) começa a ensaiar um número de ballet para apresentar no dia da festa, no palco principal. No entanto, por ser conhecida como a louca da cidade, a Secretaria Municipal de Cultura não a quer de jeito nenhum na programação, lhe dando a desculpa de que o povo acharia tediosa uma apresentação de ballet e que a vaiariam em pleno palco caso chegasse a se apresentar. Mas Pacarrete não quer dar o braço a torcer e tenta convencer a todos que a cidade merece ganhar esse ballet como presente.
Quem vê a doce senhora colocando uma música para dançar e cantar enquanto varre a calçada em frente a sua casa não imagina a coleção de xingamentos que pode sair de sua boca quando se sente injustiçada. Mas os gritos que Pacarrete dá no meio da rua não chegam nem perto do amor que dedica a cuidar da irmã doente quando está dentro de casa. É por meio desse contraponto entre a Pacarrete do imaginário da população de Russas e a mulher entre quatro paredes que Deberton constrói um fascinante estudo de personagem, descortinando o universo íntimo de sua protagonista sem qualquer julgamento e dando de bandeja a Cartaxo todas as possíveis deixas para que ela brilhe absoluta.
Com ares inegavelmente teatrais, o filme transita entre a comédia e o drama com muita naturalidade, e mesmo que ocasionalmente se torne mais lúdico ou exagerado, nunca destoa do conjunto. A direção de Deberton poderia ter se dispersado se optasse por explorar subtramas em potencial, como a de Miguel (João Miguel), o doce amigo da protagonista, mas termina sendo enfática na delicadeza com que escolhe focar nas camadas mais íntimas da alma de Pacarrete. Durante a tarefa, o filme acaba dando voz a uma mulher que, representando tantos oprimidos, é hostilizada pela cidade onde mora.
Sua única esperança e fonte de resistência é a arte. Ela se realiza através do cuidado com que mantém seus antigos figurinos, das fitas de VHS que usa para ensaiar seu ballet, dos discos de vinil que guardam as boas memórias da época da qual sente mais falta. Sua saudade dos velhos tempos é tanta, que, por vezes, Pacarrete parece viver num mundo que não existe, e, incompreendida por aqueles que a cercam, é tratada como louca. Nas mãos de uma atriz menos experiente, a personagem poderia facilmente cair na histeria, mas Cartaxo tem o controle absoluto. Ainda incluindo camadas sobre o ato de envelhecer e o eterno saudosismo pela juventude e pelos aplausos, ela entrega uma interpretação tão memorável quanto o próprio filme.
Pacarrete não tem qualquer pudor em descortinar um ser humano em todas as suas qualidades, fraquezas e imperfeições, e ao mesmo tempo em que é brutal quando mostra a marginalização do diferente, é delicado na forma como revela a pessoa por trás da casca. A Pacarrete, da vida real e da ficção, sofreu para conseguir, na velhice, os aplausos que ganhou na juventude, mas quando o longa de Deberton foi exibido pela primeira vez durante o Festival de Gramado de 2019, Marcélia foi ovacionada logo de cara. Se isso não funcionar como um acerto de contas, não sei o que mais funcionaria.
Jornalista viciada em recomendar filmes e revisora de textos recifense que vive escrevendo sobre cinema nas horas vagas.