Crítica | Os Miseráveis (Les Misérables) [2019]

Nota do Filme:

“O problema é que um drone nos filmou!”

Chris

Os Miseráveis segue a vida de um esquadrão anti-crime em Montfermeil, nos subúrbios de Paris. O recém-chegado Stéphane Ruiz (Damien Bonnard) é colocado na equipe dos veteranos Chris (Alexis Manenti) e Gwada (Djibril Zonga), contudo, logo percebe que possui uma visão diferente da de seus colegas. Com a crescente tensão na região, as coisas rapidamente fogem do controle quando um ato de abuso policial é gravado por um drone que pairava no local.

Escolhido pela França como representante para a categoria do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, a estreia em longa metragens do diretor Ladj Ly, que também assina o roteiro, causou grande impacto em Cannes onde ganhou, inclusive, o Prêmio do Júri, empatado com Bacurau, filme brasileiro dirigido por Kleber Mendonça Filho.

Os Miseráveis herda o seu título da clássica história de Victor Hugo. Apesar de não ser uma adaptação, a escolha do local, idêntica à do romance de 1862, e os temas centrais abordados, semelhantes até certa extensão, deixam claro que há, sim, uma inspiração por parte do clássico. Não à toa, termina-se o filme com uma das citações mais famosas de Hugo:

“Meus amigos, nunca digam que há plantas más ou homens maus. O que há são maus cultivadores”

Nesse sentido, o roteiro funciona como um intenso thriller policial enquanto um típico dia de uma unidade anti-crime parisiense desencadeia um emaranhado de eventos que servem tanto de representação à uma cidade dividida como, também, consequência dessa divisão. Dessa forma, o preâmbulo que temos, jovens negros periféricos acompanhando a vitória do país na Copa do Mundo de 2018 traz, de pronto, a principal temática a ser trabalhada: a marginalização de parte da sociedade francesa.

Ladj Dy cresceu em Montfermeil, e sua experiência na região é claramente perceptível. O modo como retrata a cidade em um delicado equilíbrio impressiona. Por mais que o espectador não esteja ciente dos problemas enfrentados por imigrantes nas ruas de Paris, a contextualização é rápida em mostrar a existência de poderes paralelos aos estatais que acabam por surgir de maneira quase natural ante a ausência do Poder Público no local. Esses indivíduos estão em constante diálogo com as forças policiais, que buscam a todo custo evitar a iminente ebulição da região.

Surge, então, Issa (Issa Perica), que se vê no meio de um embate entre os donos de um circo e um chefe de uma facção criminosa. Conhecido da polícia por ser “problemático”, há novamente semelhança com o romance de Hugo que aborda, também, o estigma que pessoas que já enfrentaram qualquer problema legal carregam pelo resto da vida. Quando a interceptação acontece, a cabeça quente e o despreparo resultam no ápice da tensão construída até o momento e na inevitável tragédia.

Não há heróis ou vilões em Os Miseráveis. A rebeldia da juventude local não é vista com olhos heróicos. Há, na realidade, uma tristeza no ar que paira os jovens por simplesmente se verem forçados a tais papéis. Não há nada intrinsecamente vilanesco na atuação policial, que mais parece confusa como todas as outras forças que atuam no local, desesperadamente tentando evitar qualquer conflito que prejudique o frágil equilíbrio de convivência alcançado. Até mesmo o comportamento por vezes repugnante do personagem Chris é visto como um produto do meio no qual se encontra, que acaba corrompendo quem lá habita.

Desse modo, a utilização de um drone para capturar o momento de abuso policial parece quase poética. No céu, distante da constante confusão das ruas, seu operador observa com distância e segurança ao caos. Assim que aterrissa e volta a fazer parte desse cenário, a inércia não será mais uma opção e, eventualmente, deverá se escolher um lado, em condições que tornam impossível não lembrarmos do clássico de Fernando Meirelles e Kátia Lund, Cidade de Deus.

Os Miseráveis, então, mostra-se como um dos melhores filmes de 2019. Sua estética brutalmente realista o tornam não um longa aprazível, mas necessário. O caráter cíclico da violência das ruas, representado por um final intenso e poderoso, deixará o espectador tenso por mais do que alguns segundos após o começar dos créditos finais.