Crítica | O Conde (El Conde) [2023]

Nota do Filme:

A história já é há muito conhecida, mas nunca é demais lembrar (até para nunca a repetir): em 11 de setembro de 1973 o Chile sofreu um golpe de Estado que derrubou o presidente Salvador Allende e instaurou uma ditadura militar que perdurou até 1990. Durante o período, o país foi comandado pelo general Augusto Pinochet, em um governo marcado pelo autoritarismo e pela repressão à oposição, resultando em um dos vários tristes capítulos latino-americanos do século XX. Cinquenta anos depois, o cineasta chileno Pablo Larraín (No, O Clube, Tony Manero) dirige El Conde, que apresenta uma trama vampiresca para marcar apropriadamente um macabro aniversário. 

Pinochet, ou, como é oficialmente creditado, O Conde (Jaime Vadell) é retratado aqui como um vampiro, cujas origens remontam à França do século XVIII e que, após séculos de uma vida agitada e marcada por testemunhos de revoluções e conturbações políticas, chega à conclusão de que não restam muitas razões para viver, e a ideia de abraçar o descanso eterno torna-se cada vez mais sedutora. Porém, o objetivo revela-se mais difícil do que parecia inicialmente, e a rotina do general se vê bagunçada com a visita de seus filhos abutres e a chegada da freira/contadora Carmencita (Paula Luchsinger). 

É curioso observar como o ato de transformar o protagonista em uma figura do universo do terror permitiria múltiplas opções de abordagens, todas elas propícias; de modo que o Pinochet do filme poderia muito bem ter sido um zumbi, uma múmia ou um troll. A opção pelo vampiro, por sua vez, indica uma metáfora evidente de uma ideologia que, representada por um chefe de Estado, passou anos sugando o país andino de múltiplas formas, deixando sequelas sentidas até os tempos presentes. 

Vardell, por sinal, encarna seu personagem de maneira competente, lançando mão de uma disciplina que o permite manter-se contido durante a maior parte do tempo, poupando energia para os momentos de explosão, o que vai ao encontro da idade avançada do conde. Aliás, essa não a primeira vez que o ator interpreta um político chileno em um filme de Larraín, tendo feito o ex-presidente Arturo Alessandri em Neruda. Já Alfredo Castro, parceiro de longa data do cineasta, dá vida ao mordomo Fyodor, adotando uma postura deadpan brilhante e hilária. Completando os destaques do elenco, a expressividade de Luchsinger enche de vida a simpática Carmencita, que proporciona alguns dos melhores diálogos do longa ao verbalizar com ironia e cinismo aquilo que temos vontade de dizer àquelas pessoas. 

O diretor cria algumas imagens fabulosas, como a que traz o Conde perambulando entre bustos presidenciais e se postando ao lado do de Allende, demonstrando como este já está eternizado pela História enquanto aquele pode no máximo tentar emular seu tamanho. Ou quando o protagonista e Carmencita estão conversando e há um contraste na iluminação; escura para ele, clara para ela. Aliás, na mesma cena, o figurino veste Pinochet com um enorme casaco de pele que ressalta o seu caráter ameaçador e estabelece uma relação entre predador e presa. Também é inspiradora a utilização do vestuário militar do general que, ao alçar voo, remete às asas de um morcego. Já o design de som é discreto, porém eficiente, empregando o barulho de trovões para sugerir ameaças que estão por vir.  

Larraín, que escreveu o roteiro juntamente com Guillermo Calderón (um de seus principais colaboradores), evita transformar sua obra em uma sátira óbvia ou tradicional, preferindo caminhar pela esquisitice e o desconforto. Ao optar por tal estranhamento, o realizador não deixa de espelhar um pouco a história de sua terra natal, que viveu semelhante bizarrice (para dizer o mínimo) durante as décadas de 1970 e 1980. E para que a narrativa alcance sucesso são fundamentais as doses de um senso de humor peculiar, notado, por exemplo, no uso convencional da figura do mordomo nesse tipo de enredo, ou quando determinada personagem bebe sangue através de uma xícara de chá.

Meio século após a tomada do poder por Pinochet e sua turma, El Conde oferece um recorte inventivo do saldo sociopolítico da experiência chilena, para que possamos ora rir dos criminosos, ora de nossa própria desgraça.