Crítica | Niagara (1953)

Nota do Filme:

A caminhada mais longa da história do cinema. Um dos primeiros filmes noir estilizado em cores. A catapulta para o sucesso de Marilyn Monroe. Esses são só alguns dos motivos que fazem de Niagara um clássico da história do cinema que sobrevive ao passar do tempo e às críticas cinematográficas que lhe afligem. Dirigido por Henry Hathaway, Niagara é um exemplo tradicional de uma estrutura noir que acompanha a viagem de lua de mel dos recém-casados Polly (Jean Peters) e Ray Cutler (Max Showalter), envolvidos nos conflitos e mistérios entre Rose (Marilyn Monroe), uma mulher adúltera, e George Loomis (Joseph Cotten), recém-saído de uma instituição. Em um mar de ciúmes, traição, paixão e vingança, o longa de Hathaway não oferece muito em relação à narrativa, que se apresenta sob um roteiro simplista e previsível, mas brilha ao abordar tudo sob uma ótica observativa, analogística e sensorial. 

A fórmula não interfere na experiência e no envolvimento com o filme devido ao olhar astuto do diretor, que tem uma carreira marcada por uma direção que prioriza a ambientação e elementos que integram a mise-en-scene, muitas vezes diegéticos, fazendo-a primordial no desenvolvimento da história. O protagonista aqui se torna então a própria cidade de Niagara, que é remetida com uma noção estética e simbólica que aludem à teoria do polaco-francês Jean Epstein. O teórico, essencialmente, afirmava que objetos inanimados ganham uma vitalidade narrativa quando filmados em destaque em um decupagem de contrastes e relações fílmicas. Através de uma montagem ritmada e por vezes secas nos momentos chaves, a câmera é capaz de oferecer simbolismos e novos significantes para estes elementos através da sua cinematografia envolvente e colorida em paleta lúrida.

Hathaway entende que a força do longa e, portanto, do seu suspense está exatamente em transformar a aura da história e do local em condutores dos personagens e dos seus destinos ao se apropriar dos objetos banais que são esquecidos pelos olhos corriqueiros: mais do que uma mera mise-en-scene, elementos como sinos, discos de música, água, são essenciais na invocação da ameaça anunciada desde a cena de abertura. Ao ouvir o som das cataratas acompanhadas do voiceover e pincelada com as cores de um arco-íris, é anunciado que em Niagara as aparências enganam e há muito mais do que é visto. Afinal, “por que as Cataratas deveriam me arrastar até aqui às 5 da manhã? Para me mostrar o quanto elas são grandes e o quão pequeno eu sou?”

Nessa busca antagônica pela unidade de cinismo, desconfiança e angustia, a direção de Henry valoriza a interpretação minuciosa de seus atores, principalmente de Monroe, que se destaca como vilã em um papel que poucos estavam acostumadas a vê-la, embora ainda tivesse a lascívia que a eternizou no imaginário cultural: é a primeira vez que ela não consegue alcançar o seu objetivo tendo a sensualidade como artifício, legitimando a ordem sexista da época de que a mulher em dado momento se torna submissa ao homem. Como vilã, Monroe teve então a oportunidade de mostrar seus dotes dramáticos em uma interpretação de nuances cínicas e maliciosas. Diante de uma câmera apaixonada pela sua presença, Marilyn é um degradê de emoções e intenções, instigando o público a lhe acompanhar em sua odisséia de insídia. Ela sabe que essa dubiez é a sua principal arma de manipulação e faz questão de usá-la em seus trejeitos e tons. É um sorriso de lado, um olhar lânguido, um suspiro, um trago reflexivo, que pode passar despercebido e deixar escapar pormenores que engrandecem o personagem nessa dubiedade provocativa. 

O diretor sempre faz questão de harmonizar a presença humana com o local, seja com um arco-íris na porta atrás de Marilyn ou com os sinos vibrando por toda cidade em ressonância simultânea ao encontro dela. Esse jogo com o espectador também é realizado por Joseph Cotten, que é apreendido por Henry em uma ótica mais expansiva para criar uma distância entre ele e a audiência, criando uma claustrofobia emocional que se rebela contra a magnitude espacial. “Não deixe a situação sair do controle, como as cataratas ali fora”, ele grita. Obcecado e inseguro, o personagem de Cotten está enclausurado na infinitude do silêncio e sua linguagem corporal é a mensageira dessa angústia, evidenciada em planos médios e abertos que inserem o personagem nesse estado de limbo. Esse retrato dos personagens possibilita a personificação de todos os elementos sensoriais e simbólicos que Henry tenta extrair do roteiro, convidando o espectador a enxergar além da cena e buscar uma profundidade no roteiro que inicialmente não existia. 

Nessa relação mutualística entre texto e imagem, o filme deixa de ser apenas uma história de vingança de um casal e carrega em si tropos de uma época, se abrindo para inúmeras leituras. Visto que trata-se dos anos 50, por exemplo, por quê não interpretar que Monroe e Cotten representam, respectivamente, os reveses da sociedade (e sua retomada pós-guerra), o passado desses indivíduos que estiveram na linha de frente e o duelo entre essas duas moedas? É um filme que, embora nada excepcional, é daqueles que escondem o seu mérito e precisam que o espectador esteja aberto a tentar desvendá-lo mais a fundo, para além do que uma primeira exibição, e vê-lo como um produto que simboliza uma passagem na história do cinema e um uso cinematográfico que foi aprimorado no decorrer do tempo. É essa sedução do espectador pelo domínio da arte que faz com que Niagara deixe de ser apenas um filme mediano, de soluções óbvias, para se tornar um daqueles longas-metragens que não se deixam ser apagados pelo tique do relógio.