Crítica | Mormaço (2019)

Nota do Filme:

“Já percebeu que a cidade está toda desaparecendo?”

Ana

Mormaço acompanha a trajetória de Ana (Marina Provenzzano), defensora pública do Rio de Janeiro que atua em prol das famílias que residem na Vila Autódromo, comunidade da zona oeste da cidade. Em meio às obras para as instalações esportivas necessárias às Olimpíadas de 2016, os moradores, representados por Domingas (Sandra Maria), líder da associação, buscam manter as suas casas frente ao poder público. Ao mesmo tempo, a protagonista enfrenta problemas análogos, uma vez que seu prédio, também alvo de um empreendimento imobiliário, tenta despejar seus moradores, à colocando em um estado de constante estresse.

O longa, exibido no 46º Festival de Cinema de Gramado, marca a primeira direção solo de Marina Meliande [1] – conhecida pelos filmes A Fuga da Mulher Gorila e A Alegria, ambos co-dirigidos por Felipe Bragança. Ao misturar um pouco de fantasia aos eventos reais, promete trazer luz a um problema recorrente da metrópole. Ainda, aborda a questão da moradia não apenas em seu sentido prático e necessário mas, também, simbólico. Isto é, o que representa habitar algum lugar, criar raízes e sentir, naquela locação, parte da vida daqueles que por ali passaram.

Mormaço que, por meio de seu título, desde o início deixa claro se tratar de uma situação sufocante aos envolvidos, busca contar a história de pessoas que, via de regra, não têm essa oportunidade. Em meio aos megaeventos esportivos que tomaram o Rio de Janeiro tão recentemente – Copa do Mundo (2014) e Jogos Olímpicos (2016) –, muitos foram aqueles que tiveram o seu direito à propriedade relativizado pelo Estado. Aqui, em específico, a resistência dos moradores da Vila Autódromo face à remoção que a prefeitura da cidade, com o seu já péssimo histórico em assuntos semelhantes, buscava, a despeito de seu expresso desejo de permanecer no local, onde já haviam constituído uma comunidade.

A diretora aproveita a oportunidade para traçar um paralelo entre a jornada de Ana e Domingas, vez que passam por problemas análogos. O tratamento concedido a cada uma, contudo, é extremamente discrepante, por mais que as táticas para cansá-las sejam parecidas. Essa diferença permanece no decorrer da obra, mesmo em momentos críticos, deixando claro ao espectador a difícil posição na qual se encontra a personagem de Sandra Maria [2].

Ademais, Marina Provenzzano emprega, em sua interpretação, um realismo digno. À audiência cabe acompanhar a trajetória dessa mulher que, em decorrência do constante estresse de seu trabalho e vida pessoal, é acometida por um tipo anomalia em sua pele. Ao seu médico indica que há muito tempo não sabe o que é conforto. A letargia, em grande parte acentuada pelo constante calor que assola a metrópole, cria algo asfixiante e, eventualmente, a atinge. Nesse sentido, à medida que a situação se mostra mais desesperadora, suas marcas se acentuam, tática comum no meio cinematográfico, mas que, em decorrência do contexto narrativo, mostra-se extremamente eficaz e acrescenta, inclusive, um quê de fantasia à conjuntura. Destaca-se, assim, a excelente maquiagem, desenvolvida por Mari Figueiredo.

Sendo assim, Mormaço consegue se aproximar de ótimos filmes nacionais recentes que se utilizam desse elemento sobrenatural como parte integrante do roteiro, os quais destacamos A Sombra do Pai e As Boas Maneiras, ao mesmo tempo em que mantém a sua própria identidade. Com estreia prevista para o dia 09.05.2019, tem-se que é uma ótima escolha aos espectadores, sobretudo cariocas, vez que aborda um importante acontecimento da cidade o qual, lamentavelmente, não recebe a devida atenção.

[1] A diretora também assina o roteiro, em parceria com Felipe Bragança.

[2] Sandra Maria foi uma das lideranças dos moradores da Vila Autódromo e foi incorporada ao filme no processo de pesquisa e seleção de atores.