Nota do Filme:
Sabendo que o Brasil é o país que mais mata negros e homossexuais no mundo, assistir uma série como Manhãs de Setembro é uma experiência que transita entre a beleza e uma angústia profunda. Por mais empoderada e independente que seja sua protagonista, é impossível não ser tocado pela forma como ela aborda a realidade de pessoas que a sociedade insiste em marginalizar e invisibilizar. Escancarando questões que vão além da pauta LGBTQIA+, Manhãs de Setembro é uma experiência que, mesmo curta, deve ser absorvida com tempo e calma.
Lançamento da Prime Video, a série acompanha a jornada de Cassandra (Liniker), uma mulher trans vivendo sua melhor fase: o emprego como motogirl vai bem, seu namoro vai seguindo pelo mesmo caminho, ela finalmente vai conseguir bancar uma kitnet para morar sozinha e, durante a noite, brilha nos palcos interpretando Vanusa. Mas sua felicidade dura até a chegada repentina de Leide (Karine Teles, de Bacurau), uma amiga com quem se envolveu na época em que ainda não se identificava como mulher. Leide ㅡ que é camelô e mora num carro velho embaixo de um viaduto ㅡ lhe apresenta Gersinho (Gustavo Coelho), que supostamente é filho de Cassandra.
Sua primeira reação é rejeitar completamente a criança, agora com 10 anos. Mas, o que primeiramente vemos como uma atitude fria, vamos aos poucos entendendo que assumir um filho nesse momento ameaça de forma significativa a independência que ela tanto custou a garantir. E é desse jeito, evitando uma enxurrada de clichês, que Manhãs de Setembro se torna um raro exemplo de produção nacional que debate abertamente questões da comunidade transgênero e não-binária em grandes streamings.
Um retrato da marginalização da mulher trans no Brasil
A presença da própria Liniker como protagonista já é um indício de que a série se preocupa em tratar as pautas LGBTQIA+ do jeito certo. Sendo um grande símbolo de representatividade dentro da comunidade, aqui ela dá um passo enorme em sua luta contra a transfobia, colocando nos holofotes uma mulher que sente na pele a dor do preconceito.
A existência de Cassandra é, sim, cheia de música, amor e realizações, mas esses momentos se perdem na hora em que entra em contato com uma sociedade treinada para marginalizar pessoas como ela. Cassandra tem dificuldade de arranjar emprego, de manter relacionamentos amorosos saudáveis e precisa se esforçar mil vezes mais para conseguir o mínimo de respeito. Porque certas existências precisam ser tão mais difíceis que outras?
Buscando discussões profundas apesar de seus cinco curtos episódios, Manhãs de Setembro se mostra ainda mais atual por atender a duas grandes demandas da comunidade LGBTQIA+. A primeira delas é o combate ao “transfake”, que, de maneira prática, é quando um ator cisgênero interpreta um personagem transgênero. A série não só evita cair nesse lugar comum ㅡ que contribui para o preconceito e a falta de oportunidades de trabalho para pessoas trans ㅡ como também ajuda na criação de narrativas que possuam uma real representatividade.
A outra grande demanda também diz respeito à trama, que deixa de lado a velha história da mulher trans se descobrindo para trazer uma narrativa que avança nas discussões sobre transsexualidade. Cassandra já viveu sua transição há muito tempo e o fato de agora estar correndo atrás de sua independência permite à série explorar outros temas como maternidade, afeto e transfobia, por exemplo. Criar narrativas diferentes e com representatividade ainda é um grande desafio no audiovisual como um todo, mas Manhãs de Setembro prova que, sim, é possível.
Qualidade e representatividade
Escrita por Josefina Trotta e pela cantora trans Alice Marcone e dirigida por Dainara Toffoli e Luís Pinheiro, a série traz belos planos de uma São Paulo que só quem vive a cidade em sua forma mais simples consegue enxergar. Pela manhã, ela tem uma fotografia acinzentada que contrasta de maneira quase brutal com o universo colorido da vida noturna de Cassandra. O amor e o respeito que vemos em seu grupo de amigos não combina com o preconceito que eles vivem à luz do dia.
Em seu primeiro papel como protagonista, Liniker está excelente. Sua Cassandra guarda sentimentos de uma mulher que, apesar da idade, já viveu muita coisa. Ela sabe perfeitamente o momento de calar e o momento de falar, sabe a dor que guarda quem é impedida de ser amada de fato. Suas palavras têm peso e significado, e é linda sua jornada para entender onde colocar o amor que ela aprende a sentir por Gersinho.
Do outro lado, temos Karine Teles interpretando uma mulher que, mesmo não sendo a protagonista, nas mãos da atriz, se torna uma verdadeira gigante. Leide é irresponsável e, muitas vezes, preconceituosa, mas tem um coração enorme e faz de tudo por seu filho. A intenção nunca é colocar as duas em lados opostos, mas mostrar como ambas representam mulheres reais com questões muito diferentes, nenhuma mais certa que a outra.
E no meio de tantos temas e diálogos que Manhãs de Setembro levanta, a certeza é que o único julgamento que pretende fazer é à sociedade preconceituosa e LGBTfóbica. Pessoas trans e não-binárias existem, muito antes de produções como essas. E são passos de formiga como os de Manhãs de Setembro que ajudam a fazer com que ninguém as esqueça e com que, aos poucos, elas assumam seu lugar por direito.
Jornalista viciada em recomendar filmes e revisora de textos recifense que vive escrevendo sobre cinema nas horas vagas.