Nota do Filme:
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Em 1904, o escritor grego-irlandês Lafcádio Hearn, fascinado pela cultura do Japão, onde vivia desde fins do século XIX, publicou compilados de histórias de terror do folclore local, e é a partir desse material que Masaki Kobayashi dirigiu esta antologia de quatro contos que recebeu uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro em 1966.
Quem leva a sério a famosa máxima de que cineastas devem “mostrar, não falar” pode ficar desapontado com as duas primeiras histórias, nas quais o narrador talvez apareça mais do que o necessário, e é possível argumentar que os desfechos são facilmente previsíveis. De todo modo, em “Os cabelos negros” acompanhamos um samurai (Rentarô Mikuni) que, empobrecido e desesperado, abandona a esposa (Michiyo Aratama) e muda de cidade na esperança de melhorias de vida. Com a mudança as melhorias vêm; porém, infeliz e ainda apaixonado pela ex-mulher, decide retornar à casa. Ainda que, como mencionado, seja previsível, a narrativa funciona como um brutal retrato da passagem do tempo e do peso da memória.
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Já em “A mulher da neve”, dois lenhadores buscam abrigo durante uma nevasca, sendo o mais velho morto, vítima sem misericórdia de uma Yuki-onna que decide poupar o mais novo (Tatsuya Nakadai), que sobrevive com a condição de nunca contar a ninguém o ocorrido. Em uma época na qual os efeitos especiais ainda tinham muito por evoluir, destaca-se a criação da nevasca opressiva e seu contraste com a luminosidade solar.
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Seguindo um breve intervalo, voltamos com “Hoichi, o sem orelhas”. Após uma longa introdução, que apresenta uma épica batalha marítima ocorrida durante as Guerras Genpei, conhecemos o personagem-título (Katsuo Nakamura), empregado de um templo religioso que, mesmo cego, é extremamente hábil em tocar a biwa, sobretudo ao contar a referida batalha. Uma noite, é visitado por um samurai (Tetsurô Tanba), que o convida a ser apresentar diante de seu senhor. Trata-se da mais ambiciosa empreitada de Kwaidan, com resultados belíssimos, seja nas cenas em alto-mar, seja na performance musical e poética. Com uma mistura excelente de carisma e inocência, Nakamura transforma o protagonista no personagem mais querido não apenas do conto, mais de todo o filme, e faz isso – literalmente – de olhos fechados. Seu talento é tamanho que ofusca até a presença de Takashi Shimura, grande parceiro de Akira Kurosawa (Rashomon, Viver, Os Sete Samurais), intérprete do sacerdote-chefe do templo.
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Por fim, em “Em uma xícara de chá”, Kobayashi cria a mais aterrorizante e divertida história das quatro, ao nos mostrar um misterioso homem (Noboru Nakaya) que insiste em aparecer na referida xícara que um frustrado guarda (Kan’emon Nakamura) tenta utilizar, e as estranhas consequência de tal aparição algumas horas depois. Funcionando como uma espécie de epílogo, a última etapa mergulha no bizarro para extrair doses equivalentes de pavor e hilaridade. E é significativo que Kwaidan termine aqui, uma vez que o último capítulo concentra a essência do longa, reunindo elementos de cada uma das partes anteriores.
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Com relatos que se passam no Japão feudal, a recriação de época da produção é impressionante, assim como são belos os figurinos e é eficiente o emprego das cores, em especial o vermelho, presente nas quatro partes. Yoshio Miyajima, diretor de fotografia parceiro de Kobayashi em Harakiri e na trilogia Guerra e Humanidade, faz um excepcional trabalho, sendo exímio no enquadramento dos cenários. Tudo isso faz de Kwaidan uma inebriante viagem pelo estranho mundo do fantástico, uma prazerosa imersão visual pelo terror fantasmagórico.
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Historiador que acredita que a vida fica mais fácil quando vamos ao cinema.
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