Crítica | Identidade (Passing) [2021]

Nota do Filme:

Depois de um longo período de lançamentos mornos, chegou à Netflix nesta semana o filme de estreia da, agora diretora, Rebecca Hall, que veio para abrir a temporada de lançamentos mais voltados para as premiações de 2022. Ainda não é certeza que Identidade vai ter algum destaque durante o período (talvez ele não possua a força necessária para concorrer com produções maiores), mas é, sem dúvidas, um ponto fora da curva e merece atenção dos espectadores que procuram por filmes um pouco mais densos.

Rebecca Hall, apesar de não ter todo o destaque que merece dentro de Hollywood, já é uma atriz renomada, mas Identidade prova que seu talento vai muito além da atuação. Sua segurança por atrás das câmeras surpreende a cada escolha técnica e ela acaba se mostrando uma diretora muito consciente da história e da forma como quer contá-la. Plenamente no controle da situação, Rebecca entrega bem mais que um feijão com arroz bem feito e termina imprimindo muito estilo ao filme, que é repleto de sutilezas e muita elegância.

No longa, somos transportados para a Nova York dos anos 20, mas num contexto bem diferente do glamour do Grande Gatsby. Identidade acompanha o reencontro entre Irene (Tessa Thompson) e Claire (Ruth Negga), duas mulheres negras que foram amigas durante a infância, mas que, atualmente, vivem realidades muito diferentes. Enquanto Irene casou com um médico e continuou tendo uma vida humilde, Claire há anos se passa por uma mulher branca para fugir do preconceito e ter condições melhores.

Ruth Negga em Identidade

A situação de Claire, que é casada com um homem abertamente racista, é bastante inusitada e justamente por isso a convivência entre as duas vai abalar de forma tão definitiva a vida de Irene. Se de um lado Claire acaba se passando por alguém que não é, Irene se encontra na mesma posição conforme a presença da amiga vai lhe produzindo efeitos maiores do que ela consegue controlar. De lados opostos, as duas vestem máscaras sociais que acabam se tornando insustentáveis e é perceptível que as consequências, em algum momento, serão desastrosas.

A escolha por filmar uma história como essa em preto e branco pode parecer (e é) um pouco clichê, mas é também um dos grandes acertos de Identidade. Outro deles é o formato 4:3 que, não só combina com um filme de época, como também transmite perfeitamente uma sensação de pressão e até de claustrofobia em relação à existência das personagens, que nunca é plenamente livre. As duas, por serem mulheres com descendência negra numa época como aquela, nunca vão estar totalmente confortáveis para ser quem gostariam de verdade. É através de pequenas sutilezas como essas que a diretora constrói uma crítica social afiada, mas que poderia ser mais consistente.

Rebecca se aproveita muito bem de planos-detalhe e de um ritmo mais lento para imprimir sua própria identidade ao filme, mas a pedra no sapato acaba sendo bem mais o roteiro do que qualquer outra coisa. A crítica social vai perdendo fôlego no decorrer da história conforme o foco deixa de ser a situação de Claire para se tornar um ciúme infundado que Irene acaba desenvolvendo. Teria sido muito interessante que o roteiro, adaptado por Rebecca do romance homônimo de Nella Larsen, tivesse se aprofundado um pouco mais nos desdobramentos que a personagem poderia ter. A sensação é que ele se acovardou por não ter tanta propriedade para abordar assuntos como identificação de raça e relacionamentos inter-raciais. Fica o questionamento sobre qual teria sido o resultado caso ele tivesse sido adaptado por uma roteirista negra. Será que teria sido mais elaborado nesse sentido?

Tessa Thompson em Identidade.

Apesar das falhas de desenvolvimento, grande parte da força de Identidade está, também, nas excelentes atuações da dupla de protagonistas. Enquanto Tessa Thompson constrói uma personagem mais consciente e acuada por todas as situações racistas que já viveu, a Claire de Ruth Negga é muito mais extrovertida e alegre, resultado de um estilo de vida que permitiu com que ela não tivesse tanto medo da própria existência. Através de uma direção muito elegante que deixa que as personagens se expressem muito mais por gestos e reações do que por palavras, Rebecca permite que as duas atrizes brilhem soberanas na tela, sobretudo Ruth Negga, que rouba todas as cenas em que aparece.

Depois de um período sem grandes estreias de originais Netflix, Identidade acaba se destacando não só pela belíssima fotografia em preto e branco, mas também pela sutileza e inteligência com que aborda um assunto tão cruel quanto o racismo. O talento de Rebecca Hall em seu primeiro trabalho como diretora é notável em suas escolhas técnicas, que casam muito bem entre si, mas também na forma como ela escolhe olhar para suas protagonistas, dando espaço para que o espectador sinta cada uma delas com calma e sem julgamentos. Sem dúvidas, um trabalho com muita alma.