Crítica | Gloria (2013)

Nota do filme:

A vida não vem com manual de instruções. Tampouco é tão doce quanto receita de bolo. Mas há quem diga que o principal ingrediente é não desistir de ser feliz apesar das mazelas da rotina e do correr do tempo. No filme de 2013 do chileno Sebastian Lélio, Gloria (Paulina Garcia) seria uma dessas pessoas que ainda enxergam a vida sob uma ótica liberta e prazerosa, mesmo quando tudo parece fluir em direção contrária, rumo ao inevitável. Gloria, que nomeia o filme, vive a vida como alguém que acabou de descobri-la, com uma vivacidade que há de inspirar mulheres e homens que estão na chamada terceira idade. Divorciada há mais de 10 anos, a mulher segue uma vida solitária, na qual mantém um emprego tedioso, precisa lidar com as crises do vizinho e sua única companhia durante a noite é o gato do andar de cima que invade sua casa. E, no entanto, consegue se manter esperançosa em busca de mais um grande amor entre as idas aos bailes de dança. 

Durante uma das saídas, Gloria, então, conhece Rodolfo (Sergio Hernandéz), que à primeira vista parece preencher todas as lacunas dessa nova fase. No auge dos seus 58 anos, a protagonista leva o espectador nessa sua aventura romântica marcada por clichês, decepções e por uma liberdade espiritual que a encoraja a descobrir o mundo. Sob a minuciosa direção de Lélio, atenta aos elementos de mise-en-scene e seus simbolismos para além dos designados, o espectador se compadece da trajetória da personagem logo nos primeiros minutos de longa, nos quais avista-se Gloria sozinha no bar do baile. Com uma câmera distante e de aproximação lenta, que captura, primeiramente, o corpo de costas da personagem no meio de um mar de pessoas, é como se o diretor estivesse respeitando a sua introspecção momentos antes de assumir uma postura destemida atrás do seu objetivo. 

Logo depois, o plano fica mais fechado e coloca um holofote no deslocamento da protagonista, de modo a direcionar o olhar sempre para ela e seus pensamentos, mesmo que ela esteja sempre na companhia de uma ou cem pessoas. Deste momento em diante, o espectador se sente cúmplice, como um ombro amigo, e torna-se impossível virar os olhos para a honestidade descortinada. Esse tom perpetua todo o restante do filme, que assume o compromisso de ouvir, compreender e, acima de tudo, conhecer Gloria sem nenhum tipo de julgamento ou desonestidade. O espectador aceita toda a sua complexidade, desde a inconstância emocional até as suas características mais honrosas. A todo momento, Sebastian transita entre planos médios e americanos, raramente utilizando-se de movimentos de câmera e close-ups, a fim de capturar e imprimir as verdadeiras emoções da personagem que surgem na tela de forma espontânea e autêntica em relação a si mesma, as pessoas com as quais convive e o espaço que habita. 

Ao dar essa atenção a personagem, o diretor materializa Gloria no mundo, tornando todos os seus desejos e pensamentos palpáveis não só no seu próprio universo como também no mundo e evidenciando que uma mulher desta idade ainda existe plenamente e é digna de apreço. É um ser humano que tem um passado assim como também possibilidades de um futuro no mesmo lugar que sempre esteve. Ela está presente e não tem intenção alguma de passar despercebida.  Lélio aponta de forma muito coesa e despretensiosa que, embora Glória preencha alguns pré-requisitos do grupo, como ser avó e ter problemas na vista, ela também não precisa ser definida pelas pseudo-limitações da idade. Ela dança, ela trabalha, ela tem curiosidade pelo novo e ela quer amar, transar, se entregar novamente a outra pessoa, mesmo que para isso ela tenha que se decepcionar. 

É como se ela estivesse passando por um novo processo de redescoberta e autoconhecimento, algo estupidamente relacionado somente à juventude. Quando se envolve com Rodolfo, um homem graciosamente desengonçado, a personagem expande o seu espírito livre e se entrega ao desconhecido. Um dos primeiros encontros do casal, depois de terem se conhecido no baile e terem transado na primeira noite, é em um parque de diversões onde a dupla passa a tarde pulando de bungee jump e brincando de paintball. Deste modo, o filme contraria a noção de que envelhecer é sinônimo de que as mulheres, principalmente, precisam se inserir na caixinha dos padrões: ser avó, se aposentar, sentir saudade dos filhos, viver de encontros semanais com o mesmo grupo de amigas. Em suma, não se arriscar. 

É bonito ver como a personagem vai se despindo cada vez mais, de forma extremamente vulnerável e crua, conforme vai tendo mais uma chance de viver a sua vida ao extremo. A presença de Gloria é sempre latente e Sebástian não deixa nunca escapar a oportunidade de registrá-la em toda sua potencialidade. O que deve ser uma das cenas mais marcantes do filme é quando no hotel, Gloria, cansada de insistir para que Rodolfo imponha mais limites entre ele e sua ex-mulher que liga constantemente, decide ir embora e é impedida pelo parceiro. Na esperança de que ele não a deixasse ir embora, Gloria espera que ele toma uma última atitude, o que acontece quando ele a chama momentos antes dela abrir a porta. A sequência, embora tenha um teor de clichê, se desenvolve de maneira muito honesta com a trajetória dos personagens. 

Ambos têm bagagem, já passaram por poucas e boas e, querendo ou não, estão em território novo. Tudo é diferente nesta idade, principalmente o amor e o sexo por terem que se adaptar às mudanças que eles não têm controle: do corpo físico e emocional. No chamado de seu nome, Gloria fica completamente despida na frente de seu parceiro, como se suplicasse ao mesmo tempo que o desafia a enxergá-la exatamente como ela exatamente é e se apaixonasse por isso. É isto o que sou e tenho para oferecer. Eu estou aqui, sem barreiras, sem medo. Não é muito, mas se vier comigo teremos muito a viver. O corpo é a porta de entrada para algo muito maior e engrandecedor que o sentimento sexual. É a imposição de sua presença. 

É interessante pensar como o filme não recua na hora de mostrar a verdade nua e crua. Literalmente. Apesar de normal, a imagem de um casal desta idade exibida de forma tão exposta, sem pudor, é chocante aos olhos do conservadorismo ainda atual. Quantas vezes o cinema mostra uma mulher nesta idade completamente nua? Pois é, dá para contar nos dedos. Ainda mais se tratando de uma mulher que não necessariamente tem algo a dizer, que tenha vivido uma grande tragédia ou transformado o mundo. Ela é normal. E é esse realismo, com todas as suas falhas, que aproxima a normalidade dessa vida do público. Em Gloria, portanto, o jogo parece virar e a vida sexual dos dois é representada de forma corriqueira e natural, como é quando um casal está a se conhecer. Há as inseguranças do início, como quando Rodolfo se envergonha da necessidade de usar uma cinta, mas há também a excitação. 

Debruçado na mesma linguagem realista e humanizadora, com planos médios quase que métricos, o diretor retrata os encontros sexuais de forma que eles preenchem a tela, assim como estão preenchendo a alma dos personagens naquele momento, evidenciando a intimidade entre os corpos, sua movimentação e toque. Tudo na obra está completamente a serviço da personagem e somente dela. Nem mesmo os detalhes sobre outras figuras são tão relevantes. O que importa é como Gloria se relaciona com as figuras e espaços da sua vida e o que eles tiram e exaltam dela, quais sentimentos eles a fazem sentir. As insinuações são feitas sutilmente, o que provoca o espectador a estar sempre atento aos maneirismos, posturas e emoções da personagem. 

Apesar de ser considerado por muitos como um erro de roteiro, pois não há exatamente um desenvolvimento, a inserção de um pano de fundo sócio político chileno reflete essencialmente na construção da personagem. É interessante pensar como uma mulher como Gloria, de classe média contemporânea e que não passou por nenhuma grande tragédia na vida, transita por este mundo pautado por reivindicações políticas por parte de uma nova geração em um país que enfrentou governos ditatoriais – durante o qual a personagem estaria no auge dos tempos joviais. Durante um almoço, ela e um grupo de amigos discutem a situação atual do Chile e como as coisas não são como antes, interferindo no patriotismo e amor ao local. Em um dado momento, um dos amigos afirma: “Precisamos olhar para os jovens”. Esse paralelo, apesar de secundário, consegue elevar a personagem. 

Além de afirmar esse olhar da protagonista para os sentimentos da juventude, dessa constante manutenção da jovialidade da vida, essa relação simboliza que, não importa o momento da vida, sempre haverá algo para lutar, seja ela por uma conquista pessoal ou coletiva. Há sempre a busca por uma idealização que talvez nunca chegue, mas que a perseverança não a deixa parar de seguir pelo caminho da manifestação – que propositalmente, tal qual a vida, é muitas vezes representada pelos novos. Se for ainda analisar para além de um simbolismo mais poético, pode-se entender que o diretor buscou apontar como as atitudes militantes diante do mundo atual permitiu a revolução sexual, evidenciada pela personagem sempre que esta tem a liberdade de dormir com quem quiser, quando quiser e não ser julgada por isso. Foi, além de tudo, uma maneira perspicaz de ainda reafirmar, como dito acima, o tempo-espaço de Gloria dentro de um contexto recente.

No decorrer da trama, o conceito de juventude e suas expectativas são constantemente colocados em paralelo com a realidade atual da personagem, mesmo que outrora mais sutil. Enquanto Rodolfo se declara para Gloria com uma declamação de um poema lido em um livro, o namorado da filha manda um email apaixonado. Apesar de reconhecer que não compreende o mundo da internet, a personagem se volta apenas para o sentimento expressado em total idealização do romântico. Mais uma vez, o roteiro, além de contestar a ideia de que não existem novos amores fabulosos na terceira idade, afirma que algumas coisas sempre serão as mesmas, independente de forma ou idade. Na mesma moeda, a música do filme também é aliada na construção do roteiro e, sobretudo, da personalidade da personagem. 

As canções clichês de romance marcam a tônica da trilha sonora do longa, o que acaba por evidenciar essa incessante idealização do amor romântico. Seja em casa ou dentro do carro, Gloria sempre parece traçar uma ligação com as letras mais tristes e melosas que estão tocando no momento da rádio. Elas representam a sua vontade de ter uma segunda chance de viver um grande amor, um que corresponda às suas novas perspectivas de mundo após ter vivido um casamento que não deu certo e com certeza não foi o que ela havia imaginado. Ademais, a música ganha um significado ainda mais potente quando manifestada nos passos de dança. Convicta, quando envolta pelo ritmo da música, a liberdade toma conta da personagem, como se o controle que ela tem no que diz respeito ao futuro que almeja ganhasse vida e se deslocasse com confiança, mesmo que por dentro o medo da solidão e da desilusão estivessem presentes. 

Através da dança, ela consegue manifestar tenazmente a libido, a sensualidade, a felicidade, o prazer. A dança a faz sentir viva e por isto capaz de viver nos seus termos: ao mesmo tempo com o controle e a liberdade dos passos da coreografia. Essa dualidade entre a entrega e o controle do desenrolar dos próximos capítulos estão em confronto o tempo inteiro. Se no início há essa tentativa – impossível – de dominar as ocorrências da vida, enquanto simultaneamente se dispõe a encarar peripécias, ao fim a personagem já assume uma postura mais desprendida ao perceber que é preciso afrouxar os nós e deixar a vida seguir o fluxo que lhe é determinado, de modo a se entregar às situações sem ter um manual de quais posturas assumir.

 A personagem percebe que, no fim, não adianta nada o pragmatismo na conquista das suas expectativas: por mais que ela decida ir aos bailes, dançar com um homem por achá-lo um bom candidato para suprir os seus desejos, têm coisas na vida que estão fora de qualquer controle e que não dizem a respeito a ela, vide os problemas de Rodolfo com as filhas e a ex-mulher, motivo pelo qual eles se separam. Afinal, é uma via de mão dupla. Quando ocorre o término, Gloria começa a se conscientizar de que o romance é uma via de mão dupla e não há assertividade capaz de ir contra a imprevisibilidade da vida, desprendendo-se das projeções, grandes planos ou controle do futuro e de atitudes alheias: o instante do momento passa a valer mais do que as consequências para o futuro. Ela está livre para viver o que surgir no seu caminho, sem grandes expectativas, com a certeza de que às vezes a melhor solução é abrir mão do que não soma. 

Entre as sequências finais, duas grandes cenas se destacam e representam muito bem essa corda bamba que a personagem tenta se equilibrar. A primeira, um dos poucos momentos em que a fotografia assume uma ousadia psicológica com tons mais azulados, exibe Gloria, na companhia de um homem que conheceu em um cassino, a girar em um brinquedo infantil. A câmera giratória acompanha os seus movimentos, sempre com enfoque no semblante, exprimindo esse descolamento da personagem na vida. Ela se sente como se estivesse flutuando pelo chão, com os braços abertos e pronta para voar. É uma forma poética de dizer que ela está se desprendendo de tudo. Depois desse momento, todas as atitudes da personagem não parecem mais tão calculadas. Ela cede às suas emoções e age de acordo com elas, independente do resultado. Com raiva, ela decide atirar com a arma de paintball no ex-namorado. 

Essa linguagem cinematográfica, no entanto, só é potencializada pela interpretação da atriz Paulina Garcia. Com seus óculos de grande armação, que intensifica o penetrante olhar dos seus pequenos olhos, Garcia consegue de forma ímpar dizer muito ao mesmo tempo que nada diz. Seu silêncio é grandioso e com apenas o controle feroz das suas expressões faciais consegue transparecer as emoções mais íntimas e vigorosas da personagem. Em uma das cenas mais românticas do filme, na qual Rodolfo lê um poema para Gloria e já citada acima, a atriz, evidenciada pela câmera do início ao fim da sequência em um plano americano, desnuda-se sem temer diante do espectador, que se depara com um semblante expressivo do turbilhão crescente de emoções que a personagem vive. Não à toa em nenhum momento é mostrado o rosto de Rodolfo durante a recitação. Afinal, o que mais precisava ser visto além da entrega vulnerável desta mulher que, depois de tanta busca, está se entregando à sua primeira faísca de esperança? 

Na companhia visceral de Paulina Garcia a trajetória de Gloria se torna revigorante no tempo-filme do espectador. Diante da grande tela, o espectador acompanha o crescimento oscilante desta personagem. Gloria começa presa com um sonho idealizado de vida que paradoxalmente tenta obter desprendidamente e termina com a maior revelação que qualquer um, arrisco dizer, poderia ter, apesar das decepções vividas. Ao som de Gloria, na versão original italiana na voz de Umberto Tozi, a personagem percebe que dançar sozinha às vezes é a chave para ser feliz. O parceiro de dança, logo, é apenas um subcapítulo na vida que vem a seguir. Talvez, na próxima vez que alguém perguntar “Você é sempre feliz assim?”, ela possa, enfim, dar uma resposta diferente da que deu para Rodolfo.