Crítica | Farrapo Humano (The Lost Weekend) [1945]

Nota do Filme :

Há uma cena particularmente brilhante em Farrapo Humano, na qual a câmera segue em direção ao interior de um copo, como se levasse o espectador ao fundo de um poço ou para um abismo, simbolizando assim a jornada que será testemunhada a partir dali (isso sem mencionar o formato circular da borda do copo, que transmite a ideia de um ciclo vicioso). Pois o que se vê depois é a decadência de seu protagonista rumo a um caminho de autodestruição e degradação constante.    

O alcoolismo é uma doença séria que atinge milhões de pessoas pelo planeta, independentemente de gênero, cor, idade ou classe social. No Relatório Global sobre Álcool e Saúde de 2018, a OMS divulgou que o uso nocivo do álcool esteve envolvido em aproximadamente 5% das mortes no mundo e ressaltou a importância de governos tratarem o assunto como prioridade, estabelecendo políticas de prevenção e redução. Pois bem: enquanto forma de Arte que reflete o mundo e suas questões contemporâneas, o Cinema já abordou o assunto em diversas ocasiões, sendo talvez Despedida em Las Vegas o exemplar mais conhecido. No entanto, em 1945, Billy Wilder apresentou Farrapo Humano, retrato angustiante e visceral – e ainda assim uma narrativa fascinante – sobre o vício e suas consequências. 

O longa segue a vida de Don Birmam (Ray Milland), alcoólatra que está prestes a passar alguns dias de retiro e recuperação em uma fazenda na companhia do irmão Wick (Phillip Terry). Frustrando Wick e a própria namorada, Helen (Jane Wyman), Don abandona a viagem em cima da hora, embarcando em vez disso em uma recaída que pode lhe custar muito caro, vivendo o fim de semana perdido do título original. 

Cineasta dotado de uma carreira versátil, o diretor Billy Wilder soube transitar com maestria entre a comédia romântica (Se Meu Apartamento Falasse), o filme noir (Pacto de Sangue) e o drama (Crepúsculo dos Deuses), e aqui oferece várias provas de seu imenso talento. Para sugerir, por exemplo, como Don está há muito tempo no bar, em vez de escolher uma fala expositiva, prefere mostrar a quantidade de marcas que o copo já deixou na mesa, com vários círculos molhados, indicando que muito tempo já se passou. Mais adiante, enquanto o sujeito anda aflito pelas ruas em busca de uma bebida, é mostrada uma placa de trânsito com a inscrição “One way” (“mão única”, mas que também pode ser entendida como “só um caminho”). São detalhes como esses, que dizem muito sem que nada seja falado, que denotam a genialidade de Wilder. Não à toa, faturou o Oscar de Melhor Direção. 

O roteiro, escrito pelo diretor junto com Charles Brakett e baseado no livro homônimo de Charles R. Jackson, é, como de hábito na filmografia de Wilder, primoroso, tendo em vista o cuidado tomado para manter o universo do alcoolismo verossímil. Desse modo, a narrativa acerta quando mostra Don pedindo que sequer façam referências a líquidos na sua frente (mesmo que seja água ou leite), pois isso pode estimular uma recaída. Igualmente, a obra retrata bem como o gatilho para uma bebedeira pode ser ativado em uma pessoa tanto em momentos de nervosismo, ao ouvir pessoas falando mal dela, quanto em situações mais banais, ao ver personagens brindando em uma ópera. Isso sem contar os excelentes diálogos: “Não preciso realmente beber, só preciso saber que a garrafa está por perto”; “A bebida de noite é aperitivo e de dia é remédio”. Não à toa, faturou o Oscar de Melhor Roteiro Adaptado. 

Já a composição de Ray Milland é fundamental para o sucesso do projeto. Isso se traduz, por exemplo, na maneira intensa como Don olha para as garrafas, não importando se esse olhar está manifestando dor ou alegria. Ou no modo como sua mão treme ao se aproximar do copo. Ou na distração refletida no ato constante de levar o cigarro à boca ao contrário. Acostumado a interpretar galãs e tipos sofisticados, soube aproveitar a oportunidade de criar um personagem icônico. Não à toa, faturou o Oscar de Melhor Ator.  

O filme ainda emprega uma eficiente rima visual com a imagem de uma garrafa pendurada por uma corda para fora de uma janela. Se no início do filme isso serve para mostrar como o apartamento de Don é anormal em relação aos de seus vizinhos, com vasos de plantas pontuando a paisagem de Nova Iorque, no final serve como uma metáfora de sua própria vida. Uma vida que era capaz de encontrar a garrafa literalmente na luz. Parece desnecessário dizer, mas, não à toa, faturou o Oscar de Melhor Filme.