Crítica | Era Uma Vez Um Sonho (Hillbilly Elegy) [2020]

Nota do Filme:

Uma das produções originais da Netflix do ano de 2020, Era Uma Vez um Sonho conta a história baseada em fatos reais de Beverly (Amy Adams) e seus filhos, J. D. (Gabriel Basso) e Lindsay (Haley Bennett), que formam juntos uma família pra lá de disfuncional, incluindo também os avós (Glenn Close e Bo Hopkins), pais de Bev, que moram na mesma cidade e vivem em casas separadas.

A vida não é fácil para os moradores do bairro de classe média baixa em que vivem, onde as pessoas vivem brigando, gritando e se desentendendo. Em sua casa, Bev não foge ao padrão: está sempre tentando impor suas regras elevando o tom de voz, e, principalmente, usando e abusando da sua força física. Não houve uma cena sequer em que a personagem não tenha dado um chilique quando foi contrariada.

Logo no início do filme já vemos que J.D. é um menino que sofre bullying por estar acima do peso, e também por não se encaixar nos círculos sociais, o que o torna um alvo fácil para os outros garotos. A busca pela aprovação dos amigos fica ainda mais difícil quando sua família protagoniza cenas públicas de puro vexame com frequência.

Há muitas histórias parecidas com a dos Vance na vida real e é difícil julgar a forma como cada um reage aos acontecimentos de suas vidas. Aqui, Bev mostra a sua completa incapacidade de lidar com as feridas emocionais acumuladas ao longo da vida, tanto pelas brigas e negligências dos pais na sua infância, quanto pelos infortúnios da própria jornada.

Apesar de muito inteligente, ela nunca atingiu seu sucesso profissional, e também nunca conseguiu manter um relacionamento por muito tempo. Acumulando insucessos, Bev se torna cada vez mais amargurada e revoltada com o desenrolar de sua vida, sem olhar um minuto sequer para as próprias atitudes e suas consequências, culpando sempre terceiros pela sua infelicidade.

A personagem vivida por Amy Adams não convence, e aqui entramos no que acredito ter sido um dos furos mais gritantes do roteiro: o telespectador não consegue estabelecer um vínculo real entre o drama que deu origem às cicatrizes e a revolta que ela externa a cada cena em que aparece; quem assiste até acredita que a dor seja real, mas a conexão com a personagem não foi profunda o suficiente para gerar empatia.

Por outro lado, a avó vivida por Glenn Close nos dá a oportunidade de respirar aliviados, já que ela traz – mesmo que com um pouco de brutalidade – uma pessoa que viveu muitos dramas, e, mesmo assim, não derrama toda a sua revolta em todos que a rodeiam.

É bem verdade que uma criação molda uma pessoa, mas essa não é a única variável que a define. Há muitas questões envolvidas e não é justo culpar inteiramente os pais por um filho que cresce e não consegue lidar com nenhuma responsabilidade de forma equilibrada. Neste caso, Bev tem a constante necessidade de chamar a atenção de todos para si com atitudes extremas, como numa forma velada de pedir socorro, sem nunca admitir que realmente precisa de ajuda.

Ao conviver com alguém tão instável emocionalmente como a sua mãe, J.D. acabava tendo todas as suas energias sugadas pelo drama materno, além de sentir muita culpa sempre que ela o envolvia em suas confusões. Ao compactuar com as suas loucuras, ele sentia que estava dando carta branca para a mãe, como se concordasse com aquilo, o que sempre o deixou extremamente desconfortável e até revoltado com a avó, a quem ele culpou diversas vezes pela instabilidade da mãe.

O enredo todo me remeteu a uma frase, atribuída ao filósofo Jean-Paul Sartre, que diz algo como: “Não importa o que fizeram com você; o que importa é o que você faz com aquilo que fizeram com você”. Nessa história toda, Bev não conseguiu fazer nada de bom com tudo aquilo que fizeram com ela, muito pelo contrário, ela machuca e destrói tudo o que toca, inclusive ela mesma.

A avó, por sua vez, em que pese não tenha sido a melhor das mães, conseguiu criar as filhas, se separou do marido abusivo e ainda foi a única luz no caminho do neto, este que conseguiu se destacar do padrão negativo vivido pelos membros da família Vance e seguir carreira no Direito.

A vida pode acabar sendo pacata e simples, em uma cidade pequena, com um marido e três filhos, como aconteceu com Lindsay, bem como pode se tornar grandiosa, como aconteceu com J.D., que venceu as dificuldades pessoais e familiares e encarou o desafio profissional em uma das Universidades mais prestigiadas do país.

Cada jornada tem a sua beleza e deve ser vivida integralmente. É claro que todos carregamos feridas, é inevitável que nossos pais errem conosco, mesmo querendo muito acertar. A problemática dessa família é o acúmulo de traumas, que vão passando de geração para geração, num ciclo vicioso de destruição que machuca todos os que vivem próximos a essa dinâmica familiar.

Fica claro para quem assiste que o ciclo foi quebrado com J.D., que conseguiu vencer o ambiente desfavorável que cresceu quando aproveitou a oportunidade dada pela avó de tentar uma vida mais estável morando com ela. A avó não só acreditou no potencial dele, como também foi a fonte de inspiração e força nos momentos mais difíceis que ele teve que encarar.

A lição que fica é a da importância de ter alguém que acredite no seu potencial, do poder que uma atitude (ou um conjunto delas) pode ter na vida de outra pessoa. Às vezes basta um empurrãozinho para aflorar algo que já estava ali, mas que era constantemente sufocado por outras coisas que pareciam urgentes, mas, na verdade não são.

No que tange à produção, confesso que quando ouvi dizer que a Netflix estava produzindo um filme dirigido por Ron Howard (Uma Mente Brilhante), protagonizado por Amy Adams e Glenn Close, ambas indicadas (e esnobadas) ao Oscar, com trilha sonora de Hans Zimmer (Trilogia Batman 2005-2012), as expectativas foram muito altas. A expectativa foi muito além da realidade, que entregou um filme levemente desconexo e, por vezes, exagerado.

Era Uma Vez Um Sonho vem recheado de cenas dramáticas e diálogos de efeito, que mais deixam o telespectador incomodado com tanto barulho do que emocionado com as interpretações de grandes atrizes. Mesmo com tantas controvérsias, Glenn Close foi indicada a melhor atriz coadjuvante no Oscar de 2021. A produção também foi merecidamente indicada ao prêmio de melhor maquiagem e cabelo. A cerimônia está prevista para o próximo domingo, 25 de abril.