Crítica | Entre Realidades (Horse Girl) [2020]

Nota do filme:

A principal dificuldade em escrever uma crítica de Entre Realidades consiste no fato de que é praticamente impossível comentar de maneira mais aprofundada os pontos narrativos e temáticos do filme sem entregar spoilers sobre a trama. Mas, ao mesmo tempo, não é de todo correto falar em spoilers nesse caso, considerando que muito do roteiro escrito pelo diretor Jeff Baena e pela protagonista Alison Brie não é exato e encerrado em si mesmo, possibilitando múltiplas interpretações. Essa aparente contradição na verdade revela muito das qualidades apresentadas ao longo dos pouco mais de cem minutos da história, já que a complexidade em analisá-la reflete as equivalentes complexidades de uma obra instigante.

O elemento mais simples da trama é a sua sinopse: a reclusa Sarah (Brie), funcionária de uma loja de produtos artesanais, aficionada por cavalos e viciada em uma série no estilo Arquivo X, começa a questionar o mundo ao seu redor quando sonho e realidade parecem se misturar, o que afeta sua vida profissional, suas relações pessoais e, principalmente, sua sanidade mental.

É comum quando uma premissa que envolve o mundo dos sonhos flerte – ou abrace – com o surrealismo, especialmente nos aspectos visuais, mas não é exatamente esse o caminho escolhido pelos realizadores, que optam por manter o projeto com os pés (ou no mínimo um pé) no chão real e mundano na maior parte do tempo. Baena, responsável pelo divertido A Comédia dos Pecados e pelo pouco inspirado Vida Após Beth, compreende que, dada a natureza deste longa, a composição de imagens é fundamental, e isso ocorre em diversos momentos; aliás, a cena de abertura já apresenta uma transição que transforma o céu em um pedaço de tecido, indicando de cara que naquele universo nem tudo é o que parece. Ou quando há uma parede na frente de Sarah no instante em que a garota começa a desenvolver uma conexão afetiva, separando-a da outra pessoa, quase como se ela não fosse capaz de se aproximar mais do que isso. Há também certas convenções batidas emprestadas da ficção científica (o nariz sangrando como sintoma de que algo está errado) e dos dramas existenciais (a imagem de uma pessoa duplicada com o uso de um espelho), mas que não chegam a soar como clichês nesse contexto.

Mas além da direção, Baena se destaca no roteiro, contando aqui com o auxílio de Brie (e considerando que este é seu primeiro crédito como roteirista, a atriz demonstra um futuro promissor na função). Com exceção de um único momento, em que a protagonista faz uma busca na internet e a cena soa expositiva, a trama deixa muito mais perguntas do que respostas, mas sempre distribuindo vestígios do que pode estar acontecendo e, assim, fornecendo diferentes caminhos de interpretação. É evidente a discussão sobre saúde mental, mas também sobre a busca/perda de identidade (note-se como o resultado do teste de Sarah nunca chega) e a temática da vida após a morte, que ganha muita força no terceiro ato. De fato, o filme como um todo ganha força considerável em seu terceiro ato, muito em função da fotografia de Sean McElwee, que cria imagens inicialmente confusas, mas que vão ganhando sentido à medida que se sobrepõem.

Música e figurino também exercem bem seus respectivos papéis. Sons distorcidos que simbolizam a confusão vivenciada por Sarah e sintetizadores típicos de narrativas espaciais enriquecem a trama, assim como a roupa azul que a moça usa no trabalho, em um constante estado de melancolia (blue).

E enfim, chegamos a Alison Brie. Com nome e rosto conhecidos, a atriz poderia muito bem ter escolhido se acomodar apenas com planos hollywoodianos despretensiosos, mas é notável sua disposição em se envolver em vários projetos independentes, buscando trabalhos mais desafiadores e construindo uma carreira das mais interessantes. Aqui, sua composição de Sarah fornece uma gama de sentimentos que vão revelando uma nova camada a cada desdobramento de seu arco. E o talento de Brie fica explícito em uma cena comovente na qual, incapaz de perceber o sarcasmo de seu interesse amoroso (John Reynolds), Sarah demonstra uma felicidade genuína ao acreditar que não está perdendo a sanidade.   

Com uma atuação central firme e escapando de ser apenas mais uma história desinteressante sobre a clássica dicotomia entre sonho e realidade, o longa se revela corajoso, ousado e extremamente criativo, demonstrando que, com um roteiro que não seja preguiçoso e uma equipe capaz de traduzir conceitos metafísicos na forma de belas imagens, já se tem meio caminho andado para se destacar.