Nota do filme:
A finitude da vida é uma das certezas mais intrigantes da trajetória humana. Sem hora e data marcada, e muito menos aviso prévio, o fim se faz quando lhe convém. É como diz o ditado: “Na vida, tem jeito para tudo. Menos para a morte!”. Essas sábias e populares palavras ecoaram para mim quando estava diante da caminhada de Bia, uma rockeira que acorda 20 anos depois de um coma e terá que reaprender as funções humanas básicas enquanto resgata as suas memórias e o que um dia já foi. A premissa do longa-metragem “Ela e Eu”, ganhador do prêmio de Melhor Roteiro no Festival de Brasília, é mais do que uma reflexão sobre dores, perdas e recomeços; é uma ode à vida e às possibilidades que surgem no caminho quando permite-se que ela brilhe nos seus mínimos detalhes, sem exigir mais ou menos. É com essa nova perspectiva diante do novo mundo que Bia encanta a todos ao seu redor, uma mulher que encontra satisfação nos pequenos momentos da vida.
Dirigido por Gustavo de Rosa Moura, “Ela e Eu” constrói com muita destreza a percepção da protagonista, vivida por Andrea Beltrão com muita maestria, a partir de uma unidade estilística que valoriza a intimidade e as sensações que aqueles espaços, tão preenchidos por relações, objetos e elementos que representam uma vida inteira — tudo aquilo que por tanto tempo nada significava para a personagem. Bia é o elo entre todos os outros personagens e sua presença é, apesar das circunstâncias, leve e assertiva, um contraste da postura da sua filha Carolina (Lara Tremouroux), do ex-marido Carlos (Eduardo Moscovis) e da atual mulher dele, Renata (Mariana Lima).
Para nos introduzir a essa família, a decupagem, que intercala planos de conjunto e fechados, evidencia os desenhos e colagens feitos pela filha e as fotos de um passado coladas na parede que preenche com histórias o quarto de alguém que parou de construir memórias, permitindo que o espectador conheça quem é Bia e, assim, valorize ainda mais a sua evolução que vem a seguir. Tudo isso é potencializado pela montagem que, embora tradicional, é inteligente ao seguir a lógica comparativa, colocando em contraste a relação da filha, do ex-marido e da atual mulher com os espaços da casa e do Rio de Janeiro. Enquanto Bia tem somente aquele lugar delimitado, os três estabelecem rotinas afetivas com a cozinha, a sala e seus locais pessoais, como o quarto para a jovem e o estúdio de carpintaria para o pai.
Dentro desse universo estabelecido pelo filme, o olhar de Bia ainda é, em um primeiro momento, embaçado. Seus sentidos básicos, ilustrado pelo uso de efeitos visuais que representam essa visão de mundo, ainda precisam se esmerar. Uma das sequências mais bonitas é quando Bia acorda e a acompanhamos a caminho do hospital. O que se vê não são ruas, corredores ou pessoas, mas sim sombras, formas e manchas, uma deformação que para a personagem é mais do que ela já havia imaginado ver de novo. A partir deste momento, a realidade, tanto para ela quanto para a sua família, não será a mesma. Em uma direção intimista, Gustavo cria então um filme extremamente sensível, que se pauta na proximidade quase que invasiva do espectador ao íntimo de cada personagem ao mesmo tempo que busca, nesse jogo de planos, os inserir no mundo que habitam.
Com a sua câmera aproximada, quase palpável, eles se tornam vulneráveis e o que não é dito, é mostrado, sentido. Sente-se junto deles a raiva, a alegria, a esperança, e todos os elementos ganham vida. É um filme que, a partir dessas escolhas estilísticas, se beneficia dessa honestidade nua e sensorial, pois, permite que quem acompanha essa família se sinta parte dela, mais do que apenas uma comoção terceirizada. Tão corriqueiros no decorrer do tempo, o som do sexo no quarto ao lado, do abajur caindo, a luz solar da paisagem da praia do Rio de Janeiro, uma música tocada, o bater de um martelo, o andar pela rua agitada, são ressignificados e se tornam parte essencial desse processo de (re)descoberta.
Para além da montagem e decupagem, Gustavo traz um frescor para a cinematografia comercial brasileira ao se utilizar da música como mais do que uma mera ilustração tonal do que se passa em cena. No filme de Moura, a música é um personagem catártico, que permite que os sentimentos dos personagens se expressem intensamente. As letras têm significado na história de cada um, evocando não apenas as memórias como também as angústias, pensamentos e promessas de cada momento vivido por eles. É uma imersão que vai além do superficial, que diz muito mais nos detalhes em cena, na disposição dos objetos, nas nuances de interpretação dos atores, do que exatamente no roteiro, levando a relação espectador-filme para um lugar mais profundo que não depende de intensas dramatizações narrativas.
O roteiro assinado por Gustavo de Moura Rosa e Andrea Beltrão se fortalece nessa identificação com a Bia – e até com os outros personagens -, que em meio a piadas de cunho populares, sem cair no estereótipo (impossível não rir todas as vezes que ela deseja por uma cervejinha), e a postura nada vitimista — pelo contrário, ela vai se reerguendo a partir das dores e dilemas emocionais que sente ao se deparar com as dificuldades que lhe esperam –, encantam e inspiram a todos ao seu redor. “Ela e Eu” dosa, em grande parte do longa, muito bem a sua essência de dramédia, de modo que seu desenvolvimento é muito verdadeiro e orgânico, sem que os gêneros se anulem.
É tudo familiar, simples, mas que fica grandioso nas mãos desse elenco de peso, extremamente entrosado, e na direção sutil de Gustavo. Sob esse pilar, o longa consegue se sustentar mesmo quando algumas soluções oferecidas por ele sejam sôfregas demais, contradizendo a envolvente construção emotiva que foi estabelecida desde o primeiro momento. Alguns dilemas, que tomaram seu tempo para se desenvolverem e atingirem seu ápice, são resolvidos rapidamente com o uso das elipses — que fazem alusão ao funcionamento da memória da Bia.
No entanto, em nenhum momento isso se torna um demérito para o filme, pois, ao fim, o espectador se sente íntimo, amigo desta família, apegado, e o que se desenrola não deixa de ecoar, deixando sua mensagem pairar sobre as cenas finais. É um filme que faz com que olhemos mais uma vez, com mais calma, para o nosso café, para a música que escutamos, a foto que tiramos, na tentativa de imprimir isso na nossa alma, mesmo sabendo que não é possível. Quando os créditos estão subindo, só nos resta desejar que, por um milagre, a morte nos permitisse levar a memória conosco. Quem sabe agora, com o pedido de Fernanda Montenegro, isso seja possível. E, se não for, ao menos resquícios dela ficarão para sempre para os que vierem depois como prova de que vivemos — tal qual Bia.
Jornalista Cultural, Crítica de Cinema e Produtora Executiva.