Crítica | Chatô: O Rei do Brasil (2015)

A primeira e maior surpresa de “Chatô: O Rei do Brasil” é propriamente sua existência. O filme quase virou folclore brasileiro pelos percalços que enfrentou até sua finalização, mas Guilherme Fontes superou seus problemas judiciais e entregou um bom filme (ainda que numa distribuição singela e no estilo “faça você mesmo”) em 2015, 20 anos após sua idealização.  

“Chatô: O Rei do Brasil” é inspirado na obra homônima de Fernando Morais e retrata momentos fundamentais da vida de Assis Chateaubriand (1892-1968), advogado, jornalista e magnata das comunicações no Brasil, entre o final dos anos 1930 e início dos anos 1960. Chateaubriand criou o Diários Associados, fundou a Rádio Tupi e posteriormente a TV Tupi, primeira emissora de televisão do país, e foi co criador do Museu de Arte de São Paulo, o MASP.

Apesar das duas décadas transcorridas, o filme envelhece bem. A excelente recriação de época e ótima direção de arte não permitem que ele fique datado, tampouco o envelhecimento dos atores durante os anos de produção atrapalha a experiência. Mas é graças a decisão artística de Fontes que, como quem já previa os empasses que adiariam a conclusão de sua obra, por sorte ou astúcia escolheu uma linguagem clássica do cinema brasileiro que conseguiu ultrapassar e superar a fossa temporal existente de 1995 a 2015, por ser uma forma típica do humor nacional que parece não se esgotar: a chanchada.

Com a ascensão de Getúlio Vargas em 1930 houve um encorajamento de romper com a fragmentação regional do país e substituí-la pela integralidade juntando suas partes. As condições de produção, principalmente das mídias de massa, foram cruciais para a criação da memória social e identidade brasileira de formação híbrida em favor da miscigenação e representação de nossos entrelaços culturais. Durante esta época, no cinema, a chanchada teve papel fundamental para consolidar e retratar esses arquétipos que refletiam a situação social do país. A chanchada é, portanto, importante não apenas como fonte documental, mas como reforço de uma memória coletiva que cristalizou esta imagem social brasileira que se sustenta até hoje.

Durante este período, a chanchada e o cinema nacional não foram as únicas mídias de massa atreladas à este e outros projetos ideológicos. A forte presença de Chatô, bem representada pelo longa, retrata justamente esse poder de influência que os donos dos meios de comunicação possuem. “Quem tem opinião não deve ser empregado de jornal, deve ser dono de jornal” resume a personagem de Zezé Polessa logo nos primeiros minutos de filme. Essa afirmação resume o tema explorado por Fontes em “Chatô” transformando este longa de biografia a comentário crítico, mas também documental, sobre o funcionamento da imprensa brasileira e seu direcionamento movido por interesses políticos.

O fio condutor da narrativa centra-se no triângulo amoroso entre Chatô (Marco Ricca), Getúlio Vargas (Paulo Betti) e a socialite Vivi Sampaio (Andréa Beltrão), e é em função deste triângulo que o filme se move. O enredo chega a creditar até mesmo o Atentado da Rua Tonelero a uma crise de ciúmes. Não seguir os fatos históricos a risca, porém, não é irresponsabilidade ou negligência política, mas uma decisão estética consciente. Além de fugir do ritmo enfadonho de dramas biográficos, ao tornar as motivações de Chatô mais pessoais, enfatiza-se à crítica ao caráter imparcial dos meios de comunicação. Inclusive, nada demonstra isso melhor do que as idas e vindas de sua parceria com Getúlio.

Vemos na tela a interpretação de Marcos inflando conforme o magnata ascende socialmente ganhando espaço e importância na alta cúpula da sociedade brasileira. “Se a lei está contra mim, vamos ter que mudar a lei” diz à Vargas obrigando o presidente a promulgar uma lei que lhe permitisse ter a guarda da filha após seu segundo divórcio. Em outro episódio, também com Getúlio, o personagem ilustra seu estilo jornalístico “sua revolução precisa do meu jornal” ao que Vargas responde “e seu jornal precisa da minha revolução” ou então num diálogo com a personagem de Gabriel Braga (ótimo) “Quem ganha a guerra é propaganda. E quem faz propaganda é o jornal. E quem faz o jornal sou eu e não o Sr. Washington Luís.”

Se o filme não faz condenações a respeito do estilo nada ortodoxo de jornalismo ou mesmo de suas sabotagens contra as marcas anunciantes, é porque aqui, assim como ocorre nas chanchadas, não se constrói a figura de um herói ou vilão. Há sobreposição de vozes que coexistem, interagem e constroem juntas personagens em espaço de convivência social que unem tradicional e  popular, pobre e rico,  mocinho e malandro, que alinham o que há de tradicional em nossas idiossincrasias. Assim, as ações e caráter de Chatô não são nem romantizados nem demonizados.

Todas as interpretações foram feitas com o vigor que essas personagens meio clowns de Fellini meio paródias do jeitinho de ser brasileiro demanda. A Vivi Sampaio de Andréa Beltrão tem aspectos de femme fatale, o Vargas de Paulo Betti é uma caricatura com sotaque sulista carregadíssimo. Mas as personagens caricatas nunca se tornam um problema, pois harmonizam com a linha cômica em que sexo é poder e o esdruxulo é dramático. 

O filme, porém, tem problemas de ritmo. Há planos curtos que se repetem e personagens que são lembrados e esquecidos quando conveniente, mas não tem boa justificativa narrativa para tal, além da ausência de algumas cenas de ligação. Tudo é justificado, claro, pelo onirismo que permeia o filme, principalmente às cenas do julgamento delirante de Chatô, mas a montagem torna-se repetitiva e cansativa. Algumas vezes o diretor parece tropeçar em sua ambição de elaborar um filme complexo e acaba fazendo um filme confuso (principalmente em seus primeiros 10 minutos).

Ainda assim, os acertos dos filmes são quantitativamente maiores e artisticamente mais interessantes do que seus erros. Além de vencer o penoso processo de criação, agora já impossível de descolamento do produto final, Fontes tem seu mérito potencializado pelo intrincamento que fez entre forma e conteúdo na linguagem escolhida. Assim como o humor pelo escracho não parece sair de moda no Brasil, também a imprensa parece sempre (e talvez cada dia mais) afixada à interesses pessoais de projetos ideológicos.  Mudam-se personagens… A estrutura social e política permanece a mesma.