Crítica | Censor (2021)

“É o olho arrancado…é muito, é muito realista.”

Enid Baines

Nota do filme:

Censor acompanha Enid (Niamh Algar), que trabalha como censora de filmes de terror para o Governo Britânico, avaliando as cenas e determinando se ele está apto, ou não, à distribuição. Contudo, após se deparar com um longa (Don’t Go in the Church) que parece recriar o desaparecimento de sua irmã, ocorrido anos antes, começa uma jornada para descobrir se há alguma relação entre a ficção apresentada e a realidade em que vive.

A censura e o Cinema, infelizmente, não são uma combinação estranha ao brasileiro. Durante a Ditadura Militar, a censura aos meios audiovisuais foi intensa e, após a redemocratização, por meio do projeto Memória da Censura no Cinema Brasileiro, idealizado por Leonor Souza Pinto [1], constatou-se que 444 filmes brasileiros sofreram com esse mal no decorrer do período.

Censor aborda o modo como a censura acontecia  no governo britânico durante a década de 80, com a chegada do VHS e a facilitação de distribuição de produtos audiovisuais. Nesse sentido, em 1984, o parlamento britânico intitulou o Video Recordings Act, por meio do qual criou-se uma autoridade – British Board of Film Censors (BBFC), hoje renomeado British Board of Film Classification – para analisar as obras antes de sua distribuição, podendo a autoridade determinar cortes na película ou, ainda, o seu banimento, de modo que não poderia ser legalmente vendido. Inclusive, as partes envolvidas poderiam sofrer processos pelo próprio governo caso seguissem com a sua venda.

Por mais que o parágrafo acima não seja estritamente necessário para o espectador tradicional, especialmente considerando que é fácil se determinar o que, afinal, acontece em tela por meio de mero contexto da cena – e, em especial por terem os brasileiros, familiaridade com o tema de censura audiovisual –, ter ciência da parte histórica nos ajuda a compreender que o gênero do terror lida com preconceitos desde a sua concepção.

Isto porque, enquanto a censura no Brasil fora instaurada, literalmente, por um regime ditatorial, cujo principal objetivo era justamente a manutenção do status quo, suprimindo qualquer obra que pudesse vir a questioná-lo, no Reino Unido foi meramente para vetar obscenidades com medo de que elas incentivassem atos semelhantes. Portanto, cenas com gore extremo ou conteúdo excessivamente explícito tinham que passar pelo crivo do BBFC, demonstrando que não se faz necessário um regime ditatorial para a supressão de liberdades individuais, em especial a de expressão audiovisual.

Feita essa (não tão) pequena contextualização, o filme traz o dia a dia de uma funcionária do órgão, com foco especial no senso de dever que parece sentir com a tarefa. Não se trata de entretenimento, como deixa bem claro aos seus pais, mas de um ofício que visa a proteção da população.

Dessa maneira, quando Enid é tão fortemente afetada por Don’t Go in the Church, a ponto de prejudicar os seus afazeres diários, a audiência relembra os seus fortes sentimentos pelo seu trabalho e nota, portanto, o quão pessoal é a questão. O mistério envolvendo a sua irmã, bem como as possíveis influências negativas que um erro no seu trabalho podem resultar – a crença de que homicídios são cometidos por inspirações em trechos de filmes –, resultam no seu declínio mental, tornando a dissociação de realidade e ficção algo complexo para a personagem.

Ainda, há uma metalinguagem trabalhada pela diretora Prano Bailey-Bond – em sua estreia em longas-metragens – bem interessante. O conceito de real e fictício vai se esvaindo à medida que a película avança, aumentando o grau de tensão da história e desafiando o espectador a acompanhar a narrativa, de uma maneira positiva. A sensação de temor aumenta, acompanhada por uma forte claustrofobia à medida que Bailey-Bond diminui a proporção da tela de maneira tão gradual que o espectador se sinta “preso” pela própria tela.

O filme não busca responder às perguntas que ele mesmo propõe. Não se trata de uma experiência fechada em uma caixa – o que é irônico tendo em vista as opções da diretora quanto à proporção da tela –, mas que ficará junto ao espectador. Ao final da película temos, novamente, outra ótima utilização de foreshadowing [2], bem como uma metalinguagem referente à censura de obras do gênero terror, e como isso meramente submerge o problema referente à violência, eis que funciona como “bode expiatório” para a questão.

Dessa forma, Censor é um dos lançamentos mais interessantes de 2021. Sua atmosfera imersiva se alia à sua estrutura intrigante, atraindo a audiência para a narrativa. Seu diálogo metalinguístico com a realidade, ainda, acrescenta maiores camadas à história e marcam Prano Bailey-Bond como um nome a ser acompanhado.

[1] Doutora em Cinema pela Universidade de Toulouse, França, produtora cultural e pesquisadora da censura imposta ao cinema brasileiro entre 1964 e 1988.

[2] Artifício pelo qual um autor insinua fragmentos da história que ainda está por vir.