Crítica – Benedetta (2021)

Nota do filme:

No livro Atos Impuros – A vida de uma freira lésbica na Itália da Renascença, a historiadora Judith C. Brown conta a trajetória de Benedetta Carlini, abadessa que, em meados do século XVII, abalou as estruturas da Igreja Católica alegando possuir visões sobrenaturais e, principalmente, com a relação amorosa que manteve com a colega de convento irmã Bartolomea. A farta documentação arquivística sobre o caso resultou em uma das principais fontes para o estudo da lesbianidade no início da Era Moderna na Europa Ocidental. E é tal obra que serve de base para Benedetta, novo longa de Paul Verhoeven, que acompanha a personagem-título (Virginie Efira) vivendo as situações registradas no livro, incluindo, é claro, seu envolvimento com Bartolomea (Daphne Patakia).

Digo “é claro” porque, afinal de contas, sexo é um assunto recorrente na filmografia do cineasta holandês. Assim como a violência, e aqui temos doses generosas de ambos os temas, escolha que gera efeitos ambíguos; se, por um lado, proporciona cenas que colaboram com a narrativa, como na rima visual que traz duas figuras diferentes – e seus respectivos seios – caindo acidentalmente em cima de Benedetta, por outro, há instantes que parecem apenas buscar o choque pelo choque. Ao passo que a utilização de cobras em determinado ponto é, convenhamos, pouco sutil em seus significados.

Mas o realizador também dá mostras de inspiração, como ao incluir um prólogo que é hábil no sentido de, ao mostrar uma passagem da infância da protagonista, estabelecer sua personalidade e explicar muito de sua natureza e, assim, tornar mais compreensíveis os comportamentos assumidos por ela em sua vida adulta. É nesse prólogo, inclusive, que o diretor enquadra a garota envolta em um vermelho vivo na carruagem que a transporta, quase como um presságio do que a aguarda no futuro. Esse jogo com a referida cor, aliás, é algo que Verhoeven já havia feito em seu longa anterior, Elle.

Por outro lado, a produção contém alguns problemas em seu ritmo, especialmente a partir da introdução do personagem de Lambert Wilson. Mas talvez o mais grave seja a opção de, em diversos momentos, abrir mão de explorar a dinâmica estabelecida entre Benedetta e Bartolomea, dinâmica essa que fortalece a obra toda vez que é abordada. Porque Efira compõe a protagonista com uma intensa mescla de autoconfiança e medo, sempre tornando a experiência de observá-la em algo interessante (e não deixa de ser curioso notar como ela guarda semelhança com sua personagem em Sibyl, no qual a atriz também vive uma mulher que vai crescentemente ficando obcecada por uma moça mais jovem, vivida por Adèle Exarchopoulos). Já Patakia, dotada de olhares expressivos que a todo tempo sugerem energia e vivacidade, converte seu papel no centro mais trágico do enredo, de modo que é inconcebível não sentirmos por Bartolomea outra coisa que não solidariedade. Fechando o elenco principal, temos Charlotte Rampling, que, competente como de costume, parece esconder coisas – das personagens e de nós – mesmo quando se propõe a ser o mais franca e aberta possível.

Sendo eficiente também em retratar a degradação provocada pela obsessão religiosa e os estragos – individuais e coletivos – que uma visão fundamentalista pode causar, Bendetta apresenta curiosa semelhança com Saint Maud, embora, diferentemente do terror de 2019, oscile mais na condução de sua história. E deixa em seu encerramento um gosto amargo quando constatamos que, por mais que tenhamos avançado, o preconceito e a ignorância que arruinavam vidas há 400 anos permanecem vivos e saudáveis. O fato é que, mesmo em seus trabalhos menos iluminados, Verhoeven sabe, como poucos, tirar o espectador da zona de conforto.