Crítica | Barbie (2023)

Nota do Filme:

Se você está lendo esse texto na semana de 20 de julho de 2023, sabe que o cinema está vivendo um momento histórico. Em todo o mundo, cinéfilos fazem sua escolha entre assistir primeiro à Oppenheimer, de Christopher Nolan, ou à Barbie, de Greta Gerwig. Independente da escolha, todos sabem que ambos os filmes garantem uma experiência cinematográfica única, nem que ela se dê pela mera expectativa de meses de espera.

Apesar do frenesi envolvido no lançamento do grandioso Oppenheimer, os fãs de Nolan sabem bem o que esperar do diretor, que vem mantendo um estilo sólido durante toda a sua filmografia. Por outro lado, sentar na poltrona de uma sessão lotada de Barbie implica em ser realmente surpreendido. Os comentários são ansiosos quando as luzes se apagam, a logomarca da Wanner surge rosa na tela e uma sensação de expectativa toma conta da plateia.

Greta Gerwig é uma diretora jovem, ainda desconhecida do grande público, mas muito talentosa. Desde seu debut em 2017 com Lady Bird, vem conquistando fãs maravilhados com a sensibilidade e o bom humor que permeia suas histórias. Sua parceria com o marido Noah Baumbach também lhe rendeu papéis memoráveis como o de Frances Ha, no cultuado filme homônimo. Seja na frente ou por trás das câmeras, Greta se mostra sempre inovadora e surpreendente, características que a acompanham neste que é seu projeto mais ambicioso até aqui.

O marketing pesado das gigantes Wanner Bros. e Mattel vem contribuindo para que, desde o anúncio da data de estreia, Barbie venha acumulando fãs, haters, mas, acima de tudo, curiosos. Uns acreditam que um live-action sobre a boneca deveria se limitar a um divertido entretenimento. Outros, conhecendo o trabalho de Greta, concordam que ela não filmaria uma história que não tivesse um certo conteúdo. Mas, no fim das contas, ninguém estava preparado para, nas palavras da própria, a “aventura anarquista e selvagem” oferecida por Barbie.

Margot Robbie em cena do filme Barbie (2023).

Isso porque, já sanando dúvidas, este não é um filme infantil nem recomendado para crianças. Apesar de reproduzir em detalhes a experiência lúdica e colorida de brincar com a boneca, as reflexões falam com a mulher que traz no coração uma nostalgia gostosa, mas incômoda. Barbie sabe exatamente a quem está se dirigindo, qual discurso promover, quando debochar e quando emocionar. E é por isso que se torna um filme tão rico e inteligente.

Estrelado por Margot Robbie e Ryan Gosling, o filme acompanha a boneca mais famosa do mundo vivendo uma vida perfeita na Barbielândia junto a diversas outras Barbies e Kens. Quando começa a ter pensamentos existenciais e melancólicos, Barbie (Robbie) percebe que não consegue mais se encaixar no lugar onde vive. Ela decide, então, ir até o Mundo Real encontrar a menina que brinca com sua Barbie para alegrá-la e fazer com que a própria vida volte ao que era.

Essa narrativa simples é apenas o ponto de partida para uma história repleta de camadas mais complexas que são destrinchadas ao longo de quase duas horas. O texto escrito por Greta e seu marido parte do descontentamento da boneca para discutir, de forma bastante acessível, noções de feminismo, sexismo e patriarcado, ao mesmo tempo em que reflete sobre a figura da Barbie nesse contexto.

Quantas meninas já não se inspiraram no fato de que a Barbie podia ter a profissão que quisesse, mas se sentiram oprimidas por seu corpo “perfeito”? Da mesma forma que libertou, a boneca também oprimiu, mas o filme não a isenta de culpa. No Mundo Real, o CEO (Will Ferrell) e os outros executivos da Mattel são todos homens pregando uma realidade que não se reflete na própria empresa. Porém, é quando Barbie faz chacota de suas próprias origens que consegue virar o jogo da forma mais sagaz possível.

Cena do filme Barbie (2023).

A grande arma do roteiro é usar desse humor debochado e sarcástico para rir de si mesmo. Quão gostoso é entender as próprias limitações e tirar proveito delas! O roteiro de Barbie consegue caminhar sabiamente entre a crítica e o enaltecimento de maneira leve e divertida carregando o público junto, maravilhado. Não se trata, veja bem, de um filme para promover a marca, mas, no final, somos comprados tão facilmente que nem percebemos.

Ao mesmo tempo em que a protagonista vai se afastando da perfeição, acaba dando de cara com um mundo em que mulheres também podem tudo, mas com todas as vírgulas. Já Ken (Gosling) vê neste um lugar em que, finalmente, é o protagonista. Todos os clichês que o filme usa para mostrar sua descoberta sobre o patriarcado são funcionais, mas sem qualquer didatismo, o que é um alívio.

Mas Barbie não se sustenta apenas num texto perspicaz e cheio de observações inteligentes: ostenta, também, um visual impecável e fiel ao universo da boneca. A construção de mundo da Barbielândia é uma das coisas mais lindas que se verá nos cinemas em muito tempo. Cada detalhe das roupas, casas e objetos cênicos foi pensado para reproduzir os brinquedos, e não fazer com que este universo parecesse real.

Ao invés de trazê-la para nosso mundo, somos transportados de volta às brincadeiras da infância, uma escolha decisiva para tornar a experiência ainda mais gostosa. Lembrando o que Aranhaverso fez recentemente, Greta despeja na tela as mais diversas referências, desde modelos de Barbie descontinuados, até looks e brinquedos icônicos. Um prato cheio para colecionadores e entusiastas.

Cena do filme Barbie (2023).

Junto com todas essas referências, temos uma quantidade enorme de personagens transitando pela história, alguns com mais e outros com menos destaque. Entre o time de Barbies, Kate McKinnon, que interpreta a Barbie Estranha, faz uma das melhores participações, mas Issa Rae, Hari Nef, Emma Mackey e Alessandra Shipp também têm seus momentos. Já entre os Kens, Kingsley Ben-Adir, Scott Evans e Ncuti Gatwa dividem as atenções, mas é uma pena que Simu Liu não tenha mais destaque.

Michael Cera, como o descontinuado Allan, protagoniza momentos bastante engraçados, mas Helen Mirren, que empresta a voz para narrar a história, é quem faz as observações mais legais. America Ferrera interpreta uma funcionária da Mattel que ama a Barbie, mas é fascinada pela ideia de que a boneca poderia, também, representar mulheres reais como ela mesma. Seu discurso sobre os desafios da mulher no mundo moderno é o ponto alto do filme.

Porém, a dupla Margot Robbie e Ryan Gosling é a grande dona de Barbie. Margot, que parece ter nascido para interpretar a boneca, está radiante. Além de ter um excelente timing cômico, ainda dá uma interpretação muito sensível nos momentos mais dramáticos da história. Já Ryan está muito à vontade, sua fisicalidade combina demais com o tom pastelão do personagem e ele acaba fazendo um excelente trabalho.

É certo que nem tudo são flores na Barbielândia. Em alguns momentos, o roteiro precisa fazer um esforço grande para que certas questões façam sentido, lançando mão de simplificações exageradas que nem sempre passam ilesas. Mas o saldo final é mais que positivo, principalmente porque o longa está nas mãos de uma diretora talentosa, com uma capacidade de discernimento e controle criativo sentida em cada aspecto da direção. É assim que ela faz de Barbie a grande surpresa do ano.