Crítica | Ataque dos Cães (The Power of the Dog) [2021]

Nota do Filme:

Ataque dos Cães é um faroeste contemporâneo cheio de subtextos e complexidades que dificilmente poderia ser bem filmado por alguém que não tivesse uma sensibilidade aguçada para trabalhar enredos introspectivos. Eis que a diretora neozelandesa Jane Campion, responsável pelo magnífico O Piano, aceita a tarefa e mais de dez anos depois de seu último filme leva às telas outro trabalho repleto de uma força quase selvagem, mas ao mesmo tempo de muita delicadeza ao abordar o controle que o homem procura exercer não apenas sobre a natureza do mundo, mas também sobre a sua própria.

Ataque dos Cães, que entrou recentemente para o catálogo da Netflix, se passa em 1925 e conta a história dos Burbank, uma família que mora na costa leste dos EUA, mas que em determinado momento acaba se mudando para um grande rancho em Montana. Os dois irmãos que cuidam do negócio da família, Phil (Benedict Cumberbatch) e George (Jesse Plemons), não poderiam ser mais diferentes um do outro. Enquanto Phil é inteligente, tem espírito de liderança, mas um caráter agressivo e extremamente malvado, George é um homem mais lento e de personalidade fraca, porém gentil e muito aberto a entender e respeitar os outros.

Phil está acostumado a humilhar e dominar George, mas este escapa totalmente de seu controle quando se casa em segredo com Rose (Kirsten Dunst), uma jovem viúva local. Para desespero de Phil, Rose se muda para o rancho da família e, com isso, acaba desordenando todo o universo que ele construiu com tanto empenho para si mesmo e para George. É então que Phil começa a infernizar a vida de Rose, pouco se importando que isso, de fato, a leve ao fundo do poço.

Benedict Cumberbatch e Jesse Plemons em Ataque dos Cães.

Logo de cara, o filme, adaptado do romance homônimo de Thomas Savage, estabelece um embate civilizatório que Campion já havia trabalhado com bastante desenvoltura em O Piano. De um lado temos o civilizado George, mais calado e de gestos contidos; do outro, o selvagem Phil, cheio de virilidade e aspereza. A grande virtude de Ataque dos Cães é aproveitar o revisionismo do gênero para desconstruir essas duas figuras tão emblemáticas do western. George, que supostamente poderia sobrepor sua civilidade à brutalidade do irmão, se torna ele próprio o dominado. E Phil, muito consciente do efeito que sua agressividade causa nas pessoas, acaba se mostrando alguém com cada vez menos vontade de manter um personagem.

E esse é apenas o ponto de partida. Campion, que dirige, mas também roteiriza o filme, é uma verdadeira mestra em explorar o que está abaixo da superfície, porém trazendo aos olhos do expectador apenas o necessário. Sobra bastante espaço para a imaginação, mas a genialidade dela é justamente a maneira como conduz essas deduções: através de metáforas sutis, palavras não ditas, trocas de olhares. A diretora tem a sua disposição um cenário vasto e bastante árido, mas consegue trabalhar de forma irretocável para faze-lo parecer cada vez mais claustrofóbico e cruel. Em Ataque dos Cães podemos ver como o estilo sensorial de seu cinema se encaixa perfeitamente no modo como a história precisa ser contada, com planos-detalhe de gestos, objetos e feições absolutamente sutis e fundamentais para o entendimento do filme.

Indo além da experiência sensorial bucólica geralmente contida em seus trabalhos, a diretora faz aqui uma construção crescente de tensão e, ainda que não utilize aspectos do horror, consegue alcançar um grau de suspense muito bem-vindo para o desenvolvimento da história. Uma grande característica de seu trabalho é que, mesmo que seja bastante contemplativo, ele pulsa. E essa pulsão, esse desejo ardente, em maior ou menor intensidade, é o que dá vida à cada um desses personagens, é o que move a narrativa e seu universo. Esse desejo extravasado ou, muitas vezes, confinado é o que move as decisões de cada pequeno microcosmo, para o bem ou para o mal.

Kirsten Dunst e Jesse Plemons em Ataque dos Cães.

A escalação de Benedict Cumberbatch para o papel de Phil é ao mesmo tempo curiosa e muito adequada. Mais conhecido como o protagonista da série Sherlock, estamos acostumados a vê-lo interpretando esse homem genioso, mas extremamente inteligente e elegante. De certa forma, Phil já foi essa pessoa. Conforme adentramos seu universo, fica claro que o homem que vemos ali não passa de um personagem, existem muitas camadas por trás de sua aparência bruta. É justamente por isso que Phil fica tão atordoado com Peter (Kodi Smit-McPhee), filho de Rose. Enquanto ele se esconde, Peter parece estar sempre seguro de quem é. Obviamente que sua aproximação do jovem serve, em grande parte, para atingir Rose, mas fica claro que também existe um grande fascínio (e inveja) de Phil por sua autoconfiança.

Benedict é, sem dúvidas, o maior destaque do filme e não seria surpresa se ele fosse indicado ao Oscar por seu desempenho. Ataque dos Cães faz um enorme estudo do personagem e o ator capta de forma excelente tanto sua brutalidade exterior quanto a vulnerabilidade de seu interior. É uma atuação precisa e cheia de nuances. Outro grande destaque é Kirsten Dunst, que possui um arco dramático igualmente bem desenvolvido. Rose está luminosa no início do filme e, aos poucos, vai ficando cada vez mais triste e sem rumo, e a atriz consegue transitar perfeitamente entre essas fases e faz um ótimo trabalho.

Marcando o retorno da diretora Jane Campion ao cinema, Ataque dos Cães retoma a poesia bucólica de seus trabalhos anteriores somando a sua filmografia um drama tenso sobre a violência com que nós, por vezes, tentamos controlar nossa verdadeira natureza. Um filme que explora aquilo que está abaixo da superfície, encontra seu caminho ao deixar muita coisa para a imaginação do espectador e entrega atuações memoráveis, entre elas a de Cumberbatch, um ator que parece que ainda precisa se provar em Hollywood, mas que a cada novo trabalho comprova possuir um talento capaz de alcançar voos mais e mais altos.