Crítica | Assunto de Família (Manbiki kazoku) [2018]

Nota do Filme :

Família é algo importante para qualquer ser humano, independente do quanto uma pessoa aprecie a solitude. Essa estrutura serve de alicerce para cada um, quando parece que está tudo desmoronando, funcionando como segurança emocional para esses momentos, por mais que haja as divergências ou brigas entre os seus membros. Contudo, o que torna uma pessoa familiar de outra além do sangue em comum correndo nas veias?

“Depois de uma de suas sessões de furtos, Osamu (Lily Franky) e seu filho se deparam com uma garotinha. A princípio eles relutam em abrigar a menina, mas a esposa de Osamu concorda em cuidar dela depois de saber das dificuldades que enfrenta. Embora a família seja pobre e mal ganhem dinheiro dos pequenos crimes que cometem, eles parecem viver felizes juntos até que um incidente revela segredos escondidos, testando os laços que os unem. ”

A sinopse acima esclarece qual a essência de Assunto de Família, em que é questionado o conceito de família e o que a forma, levando a frase “família se escolhe?” em sua máxima para assim extrair a sua resposta, ao mesmo tempo em que emociona a audiência por conta da delicadeza e sutileza da narrativa.

Inicialmente, o filme já deixa claro o tom que adota, com a câmera se movimentando bastante, a fim de mostrar toda a ação durante os pequenos furtos da família, com o diretor deslocando a câmera para trás e utilizar leves movimentos de travelling para compor o cenário como um todo.

Esses movimentos adotados por Kore-eda são aplicados quase por toda narrativa, combinando perfeitamente com edição, pois quando o diretor opta pela câmera mais estática, ela se torna seca, com cortes bruscos para dar esse tom mais vagaroso na narrativa, sem pressa de desenrolar os acontecimentos. E, quando o diretor adota essa câmera móvel, a edição se torna mais ágil justamente para haver a composição do ambiente, além de servir para dar dinamismo às ações, como por exemplo, os furtos cometidos.

Além disso, a fotografia adota um tom principal de verde que é composto, além da luz, pelo brilho de objetos no cenário, sendo que ainda faz contraste aos seus personagens e estabelece que todos possuem personalidades distintas através do figurino, conseguindo ratificar o sentimento de união que os permeia através disso concomitantemente que admite as diferenças.

Vale ressaltar ainda que a montagem, feita pelo próprio diretor, é realizada de forma bastante elegante, sendo visível a influência de filmes como Pickpocket (1959), principalmente nas cenas de furto.

O roteiro consegue abordar uma gama de assuntos sobre a questão familiar, sendo que, inicialmente, levanta situações negativas como abuso, violência ou negligência sem precisar do apelo visual. Ele utiliza apenas diálogos ríspidos, gritos entreouvidos, o que aumenta ainda mais a catarse final.

Com isso, conforme a narrativa avança, Kore-eda se adapta a ela com a sua câmera, ao colocá-la nas crianças em meio a toda situação vivida, conseguindo dar voz a elas sem deixá-las como protagonistas e elucidando o sentimento de aflição nesse contexto.  E, principalmente, no caso da garota “sequestrada”, que aplica a inocência dela em relação a isso, porque além da câmera estabelecer empatia e reflexão com a audiência, a impacta ainda mais conforme os motivos da menina ter surgido são elencados em tela.

Ademais, o script oferece vários prismas da relação entre eles ao mostrar a vida de cada um dos membros fora da casa, sem juízo de valor, ao ilustrar as questões de furto, apostas ou prostituição, fortalecendo ainda mais a empatia do público ao destacar as particularidades individuais.

E, um dos outros pontos fortes do texto é saber utilizar bem o ponto das pessoas não possuírem vínculos consanguíneos entre si, questionando ainda mais sobre o que compõe uma família, nunca confirmando como essa ligação surgiu entre eles, pelo menos até o momento da reviravolta, sendo uma grande força motora da narrativa.

É impressionante como o amor familiar é constante no longa, com o diretor intensificando o roteiro ao focalizar a garota “sequestrada” em situações de acalento da família, em momentos mais íntimos, transmitindo todo esse sentimento para a audiência, na qual os “familiares” querem apenas o seu bem e felicidade, independente de questão sanguínea.

Em quesitos mais técnicos, a direção de arte cumpre importante função ao criar a casa em que todos vivem, comprimindo ainda mais o espaço pequeno compartilhado por todos ao colocar diversos objetos espalhados e empilhados, preenchendo-a quase por completo, transmitindo a ideia de simplicidade, o que ratifica ainda mais o sentimento de união que permeia a narrativa.

E, a fotografia evolui no decorrer da narrativa, sempre mantendo o tom predominante de verde, porém se torna bastante literal ao transmitir o sentimento demonstrado em tela, como por exemplo, utilizando literalmente o vermelho do fogo para demonstrar o amor ardente entre “mãe” e “filha”, ou aplicar o amarelo para simbolizar uma situação mais intensa. Ela também tem o seu verde intensificado após a primeira fatalidade ocorrer, acentuando mais o vínculo de união entre os familiares.

Além disso, Hirokazu Kore-eda aplica um simbolismo muito forte no longa, se utilizando de espelhos para provocar dualidades, reflexos para demarcar o passado, além da própria questão do furto, em que as crianças realizam um sinal com as mãos antes de o realizar, sendo que ainda o roteiro justifica o significado disso para elas e quais os motivos, desconstruindo essa perspectiva ao colocá-los em uma dimensão maior do que foi ensinado para eles, pondo em xeque as relações familiares pelo olhar dos “filhos”.

Por falar nisso, uma outra grande sacada do diretor é colocar uma situação mais adulta para a audiência e depois colocar o reflexo dela no olhar das crianças, dando uma sutil leveza e humor na narrativa, de forma bastante comedida.

No quesito de atuação, é importante ressaltar que o grupo todo possui uma química tão pujante e verdadeira que o diretor consegue transmitir isso em diálogos do dia a dia, em momentos corriqueiros como comprar roupas ou durante os jantares. Porém, o destaque vai para Lily Franky (Osamu, a avó), Jyo Kairi (Shota, filho) e Miyu Sasaki (Yuri, filha). A primeira consegue demonstrar toda a sua preocupação com todos os outros, visto que foi abandonada na velhice, acolhendo todos os que a receberam com o semblante convidativo ao carinho, deixando claro que há muito sentimento para distribuir. O segundo se coloca na posição de irmão mais velho para Yuri, querendo protegê-la a todo custo e ensinando-as sobre as coisas da vida, ao mesmo tempo em que é inseguro por conta da sua idade, e também não saber o que fazer. E a terceira é o nó entre todos os membros, que não medem esforços para acolhê-la visto que sua família biológica nunca a desejou, comunicando toda a sua carência pelo olhar, o que causa um impacto.

Logo, Assunto de Família consegue levantar o debate sobre o que é uma família, o que a compõe e como os laços sanguíneos não significam muita coisa, deixando clara toda a expressão de sentimentos que envolve esse grupo de pessoas, afinal, não basta apenas conceber a criança, a questão familiar vai muito além disso e é comprovada a todo momento com esse longa que faz essa ode ao amor.