Crítica | Amazônia Groove (2019)

Nota do filme:

“Quantas músicas cabem nesse rio?”

A cena inicial de Amazônia Groove, documentário de Bruno Murtinho, é uma das mais deslumbrantes que o cinema nacional produziu nos últimos anos. Através de um plano sem cortes, o espectador é levado rio adentro, percorrendo os interiores da floresta. Gradativamente, os sons da natureza vão dando lugar a uma cantoria humana, até o surgimento de uma série de embarcações em que é realizada uma procissão fluvial. Sem se deter muito no evento, optando apenas por observá-lo de maneira discreta, a câmera se move adiante, como que de maneira natural, deixando o espetáculo para trás e voltando à quietude do espaço, com os louvores religiosos sendo substituídos pelos cantos dos pássaros. Em seguida, ela se afasta das águas através de uma panorâmica de tirar o fôlego em que, ao mesmo tempo em que revela toda a imensidão da região, torna aquele cortejo um pontinho insignificante em meio ao verde. Deixando no ar uma pergunta sobre quantos momentos como aquele podem estar acontecendo em outros locais de uma área tão grande.

A sequência descrita acima também adquire um caráter simbólico, pois de fato o espectador é levado para dentro daquele universo ao longo dos cerca de 90 minutos em que o diretor explora as tradições musicais do lugar. Ao mesmo tempo, passamos a conhecer um pouco das pessoas que as mantêm e transmitem adiante. Outro símbolo que a produção não fará questão de esconder é a associação entre fertilidade natural do território e fertilidade cultural do povo que o habita. Afinal, como é dito em certo momento: “O povo do Pará, se não tem ritmo, cria um outro. Sempre aparece algo novo”.

Embora aborde um espaço geográfico colossal, o filme possui um recorte bem demarcado: a parte paraense do norte do país. No entanto, a diversidade de estilos, interpretações e existências é tamanha, que é fácil se esquecer de que se trata do exame de apenas um dos estados brasileiros. E Murtinho, ao lado do roteirista Leonardo Gudel, é inteligente ao explorar esse aspecto. A naturalidade com que o cineasta permite que seus “atores” contem sobre suas próprias experiências também é digna de nota, tornando a narrativa fluida e permitindo que criemos empatia com aquelas figuras. Já a estrutura escolhida pela montagem é episódica, e o salto entre um depoimento e outro pode ser meio abrupto, mas nada que comprometa o resultado final.

Mas o grande protagonista da história, o ponto de convergência que une as diferentes realidades apresentadas, é mesmo o Amazonas. E é fascinante notar como cada uma daquelas pessoas se relaciona com ele – e como essa relação influencia em suas criações artísticas. Passa a ser quase impossível vislumbrar que a sonoridade daquele meio poderia florescer em qualquer outro lugar do mundo que não ali, tornando o espaço singular e, por consequência, precioso.

E o que torna Amazônia Groove tão instigante é a possibilidade de constatar como cada uma daquelas pessoas estabelece um diálogo entre suas vidas e o lugar onde vivem. O ritmo e o movimento constante das águas se refletem no ritmo da música que criam, seja na lambada, no tecnobrega ou na guitarrada. No violão de Sebastião Tapajós ou no Carimbó de Dona Onete.   

É um longa profundamente sensível e humano que vem para somar a uma já extensa lista de exemplares de como a cultura brasileira é rica, plural, criativa e vibrante. E atesta como podemos nos deparar com essa riqueza na curva de rio mais próxima. Literalmente.