Crítica | A Vida Invisível [2019]

Nota do Filme:

“A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida.”

Vinicius de Moraes imortalizou essa frase na canção Samba da Benção, e nada captura melhor a essência dessa frase (e desse filme) do que a cidade do Rio de Janeiro nos anos 50. Esse é o plano de fundo para “A Vida Invisível”, que retrata com beleza singular o que Vinicius afirmava em sua canção. Karim Ainouz, diretor, entregou uma obra cheia de brasilidade, nos sentidos bons e ruins, e muito contundente com os temas retratados.

Eurídice (Carol Duarte) é uma jovem pianista e sonhadora. Sua irmã, Guida (Júlia Stockler), se apaixona e foge do país para se casar com um estrangeiro. Sem saber do paradeiro de cada uma, as duas irmãs vivem suas vidas acreditando na felicidade da outra, sem saber que estão mais próximas do que imaginam.

Basicamente, a trama apresentada é, propositalmente, um drama ordinário de folhetim. A jornada se torna interessante quando adiciona-se a técnica e o trabalho primoroso de Karim Ainouz, que carinhosamente orquestra o filme como em um concerto de piano. Onde parece lento, reside propósito narrativo que revela um cuidado do montador. Cada cena, seja ela real ou poética, serve à trama como notas bem executadas no piano, cada qual cumprindo seu papel na música.

As atuações sustém a dramaticidade do filme, mas o destaque é Carol Duarte, que interpreta uma personagem que passa por diversas mudanças ao longo do filme e consegue transcender a angústia da protagonista com o desenvolvimento da trama. Uma personagem calada, descontente e que não consegue extravasar suas angústias. E não se engane: as situações que Eurídice passa no longa estão longe de serem irreais, o que torna a atuação ainda mais complexa e focada na realidade.

Inclusive, os temas que são explorados aqui são problemas tipicamente brasileiros. O abandono paterno, a violência doméstica e as aparências da família tradicional são colocados em cheque por meio da narrativa que põe o peso desses problemas sobre as duas protagonistas. O marido (Gregório Duvivier), que abusa da mulher e impede que ela siga seu sonho, é um retrato de um homem que não é raro de se encontrar. E é na aposta da empatia do público com os temas que reside o motivo de A Vida Invisível funcionar tão bem: é fácil de se identificar e se relacionar com o drama apresentado.

Nesse sentido, é justo dizer que esse longa é mais brasileiro em sua essência que outros lançamentos nacionais desse ano. Não porque escancara nossos problemas, mas sim por desnudar com beleza a força de quem passa por essas situações, mesmo frente à ingenuidade (como a protagonista). São diversas peculiaridades culturais muito bem retratadas sem a necessidade de reforço do estereótipo, o que é um mérito para a produção.

A Vida Invisível é uma jornada de amor e perseverança. A fotografia reforça a temática através de tons de cores que transmitem serenidade como o azul e o verde. O vermelho entra em cena em momentos mais intensos e cheios de vida, que de certa forma estão aliados a vários momentos marcantes nas histórias das duas irmãs. Aliada a essa beleza está a cortante, e por vezes emocionante, trilha sonora. Esta cumpre sua função de modo a preencher as lacunas do silêncio apático de Eurídice em determinados momentos do longa.

Para escancarar uma realidade muito comum e pouco explorada, Karim Ainouz entrega uma obra perfeitamente em harmonia. Cores, sons e atuações formam uma orquestra afinada, que não exita em priorizar o clímax e criar emoção no público. A participação de Fernanda Montenegro é mágica e certamente arrebatará os corações da audiência. A Vida Invisível é o filme legitimamente brasileiro que não sabíamos que precisávamos.