Crítica | A Garota Radiante (Une jeune fille qui va bien) [2021]

Nota do filme:

Em momentos de crise, a Arte pode ser o último dos refúgios, e isso vale das situações mais banais às mais críticas. Seja para superar os problemas mais efêmeros do nosso cotidiano (sim, me refiro àquela playlist que nós ouvimos para suportar uma rejeição), seja para lidar com uma ocupação nazista em tempos de guerra, é perfeitamente natural e humanamente compreensível recorrer a diversas formas de expressões artísticas para aguentar os impactos, as dores e as ramificações provocadas por acontecimentos cuja natureza escapam ao nosso controle. Assim, testemunhar o que ocorre em A Garota Radiante é um lembrete ao mesmo tempo revigorante e melancólico de como existe conforto na leveza e no lúdico, por mais que o pano de fundo seja o mais obscuro possível. E que tais confortos são tão preciosos que precisamos deles até, literalmente, o último segundo de filme.

Irene (Rebecca Marder) é uma jovem aspirante a atriz de 19 anos que, sem maiores preocupações, passa a maior parte de seu tempo entre audições teatrais, e o convívio com amigos, paixões e familiares. Uma premissa simples que indica uma vida confortável, não fosse por um detalhe: Irene é judia e vive na Paris de 1942, período no qual a França se encontrava ocupada pelas forças alemãs durante a Segunda Guerra Mundial. De modo que sua paz está constantemente ameaçada e a qualquer momento tudo pode desmoronar.

Esse delicado contraste é estabelecido, por um lado, pela atuação de Marder, que compõe Irene com tamanha inocência que chega a torná-la uma figura deslocada da própria história que protagoniza, tamanha a distância entre os sonhos e ambições da jovem e o universo que infelizmente habita. Por outro lado, o horror se faz presente em pequenos gestos de violência simbólica que surgem aqui e ali (como no instante em que um personagem comenta que seria importante aprender a falar alemão), nos lembrando de que estamos longe de uma fábula. Ao invés de empregar recursos de violência gráfica ou cenas fortes, o longa opta por criar momentos mais sutis de tensão, pois sabe que se alguém surge em tela com uma Estrela de Davi bordada no peito, já é suficiente para que fiquemos preocupados.

Dirigindo seu primeiro longa-metragem e também assinando o roteiro, a atriz Sandrine Kiberlain é eficiente em criar essa atmosfera na qual o perigo parece estar sempre à espreita (portanto faz todo o sentido que ela não nos mostre o rosto de um oficial nazista) e ao equilibrá-la com a leveza de sua protagonista. Kiberlain também se destaca ao utilizar, em mais de uma ocasião, planos em que personagens são vistos descendo escadas longas e circulares, indicando o destino que os aguarda.

Outro aspecto digno de nota na produção é o figurino, que frequentemente traz Irene vestindo um casaco ora preto, ora vermelho, cobrindo sua camisa branca, aplicando cores associadas respectivamente ao luto e ao perigo (e ambas à indumentária nazista) sufocando uma cor associada à paz.

Mas o que mais me fascinou na obra diz respeito à natureza do comportamento de Irene, em uma dúvida que talvez tenha sido plantada intencionalmente pela realizadora. A dúvida, no caso, é: até que ponto a garota tinha plena noção da gravidade do que estava acontecendo? Em outras palavras, seria a inocência mencionada no terceiro parágrafo apenas mera ingenuidade ou até mesmo fruto de pura alienação? É possível cogitar essa interpretação quando pensamos nas repetidas vezes em que seu problema de visão é abordado pelo roteiro, de tal maneira que a frase “você precisa de óculos” pode ser entendida como uma metáfora para “você precisa enxergar o que está acontecendo”. Em contrapartida, pode-se argumentar que a jovem tinha sim plena noção da urgência e do risco que ela e sua família corriam, e justamente por isso recorria à Arte como um mecanismo de defesa para suportar o ambiente de barbárie que havia se instalado em sua terra natal, e para, enfim, conseguir viver um pouco. Um indício que pode sustentar essa tese é a queixa feita por seu irmão, ainda no começo do longa, de que ela “está sempre atuando”. Seja como for (até porque o objetivo aqui não é encontrar a “resposta certa”), isso evidencia a riqueza e a profundidade do texto criado por Kiberlain.

Sem derramar uma gota de sangue, A Garota Radiante consegue, em uma cena de aproximadamente dez segundos, causar mais impacto, apreensão, solidariedade e indignação do que meia hora de tiroteios que nos acostumamos a ver em um filme de guerra de alto orçamento, e isso se dá sobretudo pela sensibilidade de sua diretora, que compreende de modo admirável como é possível contar uma história belíssima em um cenário permeado de horrores.