Crítica | 2ª temporada de Segunda Chamada

Nota do filme:

Um caso de feminicídio a cada seis horas e meia. Mais de 200 mil pessoas vivem nas ruas brasileiras. 11 milhões de cidadãos ainda são analfabetos. Em média, 17 mil escolas públicas foram fechadas no Brasil desde 2011. Esse é o cenário no qual a nova temporada de Segunda Chamada, escrita pela dupla Carla Faour e Júlia Spadaccini, chega ao streaming da Globo. Mais concisa, incisiva e integralmente mais madura, a temporada tem muito mais entendimento do que a série pretende ser como uma obra completa e transforma a própria escola, seu espaço físico, em um personagem que carrega tantas cicatrizes quanto Lúcia (Debora Bloch), Sônia (Hermila Guedes), Eliete (Thalita Carauta), Marco André (Silvio Guindane), Jaci (Paulo Gorgulho) e todos os alunos que levam dentro da mochila reflexos de uma vida real. Com uma ideia central ainda mais pautada na sua intenção sociopolítica, a série se fortalece com a chegada de um grupo de moradores de rua, que são convidados pela professora Lúcia para integrarem a lista de presença diante da possibilidade da escola ser fechada por ausência de alunos e investimentos governamentais. 

Sob o mote do discurso do desmantelamento da educação e do revés que a carência de uma estrutura educacional reflete na vida de milhões de pessoas, a segunda temporada da série dirigida por Joana Jabace se fortalece a partir dessa multiplicidade de vivências que chegam junto dos cacarecos, sacos e carrinhos de mão desse grupo de moradores de rua. O que acontece é que, diferente da primeira temporada que teve uma atenção particular aos dilemas pessoais de alguns personagens, neste novo segmento há uma preocupação em trabalhar a organicidade das reflexões que são oriundas dessa diversidade social, resultando em uma narrativa que proporciona de forma muito mais orgânica e crítica o debate acerca de pensamentos e questionamentos referente às pautas contemporâneas. 

Com um elenco impetuoso, essa elevação da unidade narrativa mostra um amadurecimento de um roteiro que por vezes parecia se forçar a explorar certas temáticas apenas pelo feitio da militância, o que enfraquecia sua essência política nessa tentativa de criar casos e consequências. Dentro dessas paredes cheias de rachaduras e cadeiras quebradas, os personagens, muito bem construídos, são as próprias histórias e suas meras presenças são o suficiente para desenvolver a história; não é preciso fabricar artifícios para que temas como maternidade, analfabetismo, desabamentos, violência sexual, racismo, trabalho infantil e afins fossem postos em cena. A narrativa estava no passado de cada um, que a cada episódio iam permitindo relembrar suas memórias tão doídas. 

Uma das dinâmicas mais potentes dessa nova temporada foi a entre Lúcia e Hélio (Ângelo Antônio), um dos moradores de rua e desenhista que perdeu a mulher e a filha em um desabamento e sofre de alcoolismo. Vista como um denominador comum desse roteiro, a professora de Língua Portuguesa comanda muito bem os obstáculos que seus alunos trazem para a sala de aula, como se fosse a personificação da esperança que lhes foi tirada. Bloch, magnífica no papel com uma sensibilidade magnânima na construção dos seus trejeitos e olhares que falam mais do que seus diálogos, estabelece uma química potente com Ângelo Antônio, que assume o mesmo papel que ela dentro do seu ciclo social debaixo do viaduto. É interessante ver a troca entre os dois e como um precisa se tornar cada vez mais vulnerável para o outro, não apenas para si mesmo, mas para que consigam evoluir e se manterem firmes um para o outro e para os seus iguais tão diferentes. Eles são os espelhos para essas pessoas.

Essa referência empática é a força motriz de Segunda Chamada. É essa ideia de unidade que faz com que a série seja mais incisiva e contundente do que a primeira temporada. O que acontece com um reflete em todo mundo: se um aluno indígena sofre com o racismo, todos aprendem; se um aluno com deficiência física não consegue subir a escada, são os alunos que se locomovem para o seu conforto; se uma mulher é vítima de feminicídio, todas também são. A emoção está nessa integridade humana e a direção explora-a de forma muito humanizada e sensível, conduzindo o seu olhar para os detalhes que compõem esses sentimentos do passado e presente. É um plano mais fechado de uma mão, de uma terra, de um desenho, de um olhar, de um sorriso, de particulares que expressam o que se passa mais no coração do que na mente de cada personagem. Afinal, por vezes, a razão é subjugada para abrir espaço para a sensação, para o afeto e imaginário nas atitudes e decisões feitas por cada um ali que sabe que no jogo da vida a noção de certo ou errado é virada do avesso. 

A série comove em diversos momentos por saber explorar com zelo o sentimentalismo do diálogo, dos acontecimentos, dos flashbacks e da clássica trilha sonora e há dois momentos nos quais essa equação narrativa se faz brilhar: quando os moradores de rua se reúnem para acenderem uma fogueira por conta do frio no meio do pátio, o que desencadeia em uma aula ao ar livre sobre censura ao som de “Apesar de Você”, de Chico Buarque, e quando há uma homenagem à Sônia, professora assassinada pelo ex-marido, ao som de nomes de outras tantas mulheres que sofreram algum tipo de violência brutal. Em ambas as sequências, a diretora, ao invés de se respaldar somente nas pieguices dos discursos ou das melodias, optou por evidenciar ao máximo cada pessoa ali presente não para que perceba-se o que ela sente enquanto apenas um indivíduo, mas sim como uma soma ao conjunto, como uma colcha de retalhos que unem suas diferenças em virtude desse momento coletivo oferecendo um sentido superno. 

Ao entender essa força, Segunda Chamada mostra que é muito mais do que uma série que quer apresentar uma militância que na sua primeira temporada poderia ser lida como esquemática e romantizada em momentos. O idealismo volta para si mesmo e entende que precisa ser mais do que uma utopia, tem que se respaldar em algo mais concreto: o realismo e o espectador. A nova temporada aborda assuntos tão dilacerantes quanto à sua precedente, mas é um produto muito mais afável e afetuoso em sua abordagem, de modo que agora é muito mais envolvente, fazendo com que o público efetivamente se sinta parte dessa comunidade. Arrisco dizer que nessa trajetória, dentre 10 espectadores, nove, assim como eu, devem ter se emocionado em todo episódio. Essa imersão mais profunda possibilita uma reflexão que transcende para além do reconhecimento dos problemas da sociedade. 

É assim que, mesmo com alguns dos subplots que poderiam ter sido mais desenvolvidos e histórias pessoais paralelas que não entusiasmaram tanto quanto antes, não há perda devido ao fato de que agora trata-se de uma série que valorizou a ideia de que sua principal personagem é a Escola e é dentro dali que tudo deve acontecer, interligando a vida de todos aqueles que do portão para fora poderiam nunca se esbarrar. Quase tudo acontece, é solucionado, é pensado ali e juntos. Diferente da estrutura da escola, o alicerce entre os personagens é sólido e é isto o que interessa. É ali que suas vidas, como elucida Edith Piaf em uma das sequências mais comoventes da temporada, são pintadas de rosa. Nem que seja apenas por uma noite.