Análise | O racismo velado de Green Book ou Porque Pantera Negra merecia o Oscar

O Oscar aconteceu neste domingo (24/02) e Green Book levou o prêmio principal. No palco, uma multidão de rostos majoritariamente brancos e masculinos. O filme, ironicamente, conta a história de uma amizade que supera as barreiras segregacionistas que existiam na década de 60 nos Estado Unidos.

Equipe de Green Book recebendo o prêmio de melhor filme no Oscar 2019


O filme, mediano em quase todos os sentido – com a exceção das atuações principais -, atinge o ápice da mediocridade quando tenta discutir o elemento principal de seu enredo: o racismo.

Dirigido e escrito por um homem branco (Peter Farrelly), não é apenas simbólico como também sintomático que o longa tenha ganhado “em cima” de filmes como Infiltrado na Klan e Pantera Negra. Enquanto o filme de Farrelly é impregnado das perspectivas de realidade do homem branco que jura não ser racista e garante que este é um problema já superado em um passado (não tão) distante, os outros dois, escritos e dirigidos por homens negros (Spike Lee e Ryan Coogler, respectivamente), são tudo o que Green Book finge ser.

Infiltrado na Klan foi provavelmente o filme mais irreverente e necessário desta temporada de premiações, escancara o racismo americano ainda atual quando faz paralelos entre os discursos dos últimos anos aos da década de 70. Uma ameaça real e urgente ao status quo que tem tido cada vez mais coragem de mostrar seu monstruoso rosto fascista.

Se a obra prima de Spike Lee denuncia o discurso hegemônico, Pantera Negra o rompe de maneira ímpar sendo um marco para a indústria hollywoodiana como o primeiro Blockbuster a ter uma equipe e um elenco predominantemente negros. Mas a representatividade não para por aí.

Pantera Negra recebendo prêmio de Melhor Elenco no SAG Awards 2019


Pantera Negra se preocupou em fazer uma leitura diacrônica de como o rapto, tráfico e escravização de pessoas negras se reflete até hoje em seus descendentes – tendo o vilão Killmonger como a personificação dos efeitos dessa marginalização. Gritou o que durante anos foi abafado pelo discurso predominante. Celebrou a história africana, cantou sua força, e os apresentou à Terra Prometida – Wakanda representa tudo que a África poderia ser não fosse a invasão europeia. Pantera Negra é uma homenagem à herança histórica e cultural dos povos negros.

Do outro lado, temos Green Book, apresentando a figura já conhecida – infelizmente não esquecida – do branco salvador. É inegavelmente um feel good movie para aqueles que podem dormir tranquilos e aliviados de sua culpa já que suportam dividir o palco com pessoas não-brancas, porém nunca lembrados de que o silenciamento de vozes, é uma forma de opressão tão poderosa quanto a segregação.

Isto nos leva à discussão sobre os efeitos de verdade dos discursos, que, basicamente, aponta sobre a diferença de recepção dos enunciados a depender de quem é o seu enunciador. Aqui,  a denúncia feita pelo homem branco é mais forte que as denúncias feitas por aqueles que realmente sofrem com a situação retratada – o que, inclusive, corre o risco de acontecer com este texto –  e de qualidade técnica indiscutivelmente superiores.

A 91º edição  do Oscar foi, infelizmente, um exemplo muito didático sobre como o que se fala, o modo como se fala e, principalmente, por quem se fala, marcam as relações de poder e/ou as reproduzem. A noite de ontem mostrou como a Academia se preocupa em não parecer racista, mas ressalta o longo caminho que tem pela frente para realmente não o ser.