Análise | Na Natureza Selvagem (Into The Wild) [2007]

Jornadas que começam no papel e conceitos que se formam na imagem

Mesmo que para uma adaptação, conceber no audiovisual um diálogo filosófico direto e atrativo é sempre um desafio. O longa de Sean PennNa Natureza Selvagem, consegue ter a mão certa na visão atemporal de um grande discurso sobre origem e destino. Sobretudo, pisa firme nos placebos que criamos na busca por propósitos na vida. Simples como se apresenta e irremediável como é, o debate que o longa traz à tona utilizando para isso excelente matriz fotográfica e estonteante luminosidade, só se intensifica com a bela roupagem. Admirar a criação de Sean Penn é um resgate que passa longe de ser nocivo em sua experiência. A mudança que o filme traz é aguda e memorável. Cumpre a medida que mostra a mais arcaica função de qualquer entonação artística: mudar.

A viagem

A narrativa não trai o seu comprometimento inicial de contar em passos vagarosos a história real de Christopher McCandless (Emile Hirsch). Afiliado ao padrão de uma herança familiar que o obstinaria ao destino certo de ser quem ainda não decidira ser, seu questionamento interior sobre o seu propósito se acende em cada etapa de sua vida. Essas mudanças são acompanhadas em paralelo ao que a trama mostra em seus saltos temporais bem organizados. Há um personagem localizado no passado, deslocado e em sociedade, etapa desse roteiro focada em ambientar o espectador na história prévia de Chris e na justificativa de tudo aquilo ter sido engrenado a partir da próxima etapa. Em um intermédio bem localizado do roteiro se narra a jornada, o conhecimento e as decisões tomadas com a progressão dela. Ao fim, temos a chegada, e com ela o novo e esperado começo repleto de descompromissos, alegações individuais e libertações dos mais variados pressupostos. Livre como um todo, e de tudo.

As três etapas que tão bem se mesclam ao audiovisual do filme de compreensível duração formam em boa parte a estrutura narrativa por conta própria. Há um começo, um desenvolvimento e um fim preparados e muito claros em função disso. O roteiro busca o criativo aqui para não cair na monótona maré das etapas indesejadas de um público impaciente sobre um final ou uma realização da jornada do personagem. Se as inúmeras respostas do passado de McCandless não preenchem o vazio das justificativas dentro da jornada, certamente a própria narrativa avançada, vindo logo depois da compreensão da jornada o fará.

A delimitação de Sean Penn para contar o progresso do protagonista no que ele se tornou é sem dúvida o coração do longa. É nesse ponto de narrativa desregulada que história, metragem e o público respiram ao mesmo tempo em suas transições. Misturado aos diálogos memoráveis e a sublime interpretação dos personagens que completam a trajetória do aventureiro, Na Natureza Selvagem transcende para um filme sobre uma vida inteira. Na sua execução, não sobram vãos para vazamentos artificiais. A obra é real e pode ser sentida a cada cena melhor aprofundada.

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O viajante

Mesmo que não seja dotado dos diálogos mais comunicativos com a câmera protagonista do cinema, o personagem consegue transmitir através da técnica de captura a algo que excede o fictício. Na proximidade com a metade do filme, os diálogos e representações de McCandless conseguem beirar o documental, fisgando um público já longe da histeria de sentidos ou respostas aglutinadas. Tudo é calmo e dado aos poucos em Na Natureza Selvagem, inclusive o seu teor artístico sensacional e que sempre merece ser revisitado para novas construções de sentido.

Ilustrando a irrealidade do que a construção social fez da sua real natureza, o longa mantém essa captura própria até o seu término. São nessas pequenas abstrações da jornada principal do protagonista que o público consegue junto a ele parar e refletir. Uma reflexão não sobre o caminho para trás, mas o caminho do agora em diante, já que o contrário é função da engrenagem anterior do roteiro. Essa harmônica conservação de sentido própria para cada etapa que parafusa o longa faz com que não só o elenco pulse em sinergia com fortes personagens, mas que caminhem sobre essa mesma estrada sobre a qual Christopher tanto fala. Longe de um nada, perto de tudo. Absolutamente livre na natureza selvagem.

Para caracterizar a jornada, o filme utiliza a presença de algumas importantes personas que, quando colocadas ao contexto, adicionam uma experiência antes totalmente omissa do personagem. Encarando elas (as experiências) sempre com a mesma humildade e ingenuidade, o protagonista comprova com pouco esforço a existência da barreira, outro duro conforto social, com um estranho ou um transeunte mais bem vestido. Bebendo com estranhos, dividindo suas moradas, seguindo para um mundo de favores e conhecimentos das pequenas e das grandes coisas, Christopher desce cada vez mais as escadas marginais para o poço do autoconhecimento, sua maior e única cobiça.

O retrato dramático do filme biográfico consegue transparecer em cada cena. Muito disso vem da ótima interpretação de Emile Hirsch e de sua boa aptidão para o que vem na transição de atos ali destacadas. São várias versões dentro das próprias três versões isoladas da figura retratada do real. Essas suas sub-etapas de interpretação só mudam graças ao cenário, tempo e personagens ali contidos. O motor principal da trama é, todavia, o legado deixado para trás pelo aventureiro. Cada pedaço dele estagna em um núcleo do longa, e aquela etapa é para sempre congelada em uma bela mensagem para todo o sempre.

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A didática desenvolvida por Sean Penn na adaptação da história do aventureiro tornou clara uma proposta de empático desenvolvimento. Se observado de longe, o longa consegue conquistar exclusivamente pela forma como se apresenta. Passadas todas as revisitas ao clássico do debate sobre vida e libertação, suas peças ainda não podem ser encaixadas a partir do segundo ou na proximidade com o terceiro ato. Há na completude da obra um remendo gigantesco do que os seus pedaços tão bem expostos nessa distância falham em demonstrar sozinhos. O todo completa a mensagem. Em sua parcialidade, faltam palavras dela e a reflexão final se torna vaga e indireta.

É nos espectadores de pior memória que Na Natureza Selvagem consegue conquistar o lugar de filme de revisitação por anos. A sua expressividade tão bem emoldurada com a narrativa de Penn é grandiosa demais para ser colocada em análise enxuta. Sua compreensão final, não menor, é tardia demais para ser adiada com qualquer pressa irresponsável. Um filme que foi feito para parar você e o seu tempo, e agarrar ambos para dentro de sua história. O que ele cospe para fora são versões diferentes de ambos, banhadas em sua compreensão simples e verdadeira do que achamos ser o real. Um resgate que nunca é tardio para o essencial sentido a ser descoberto na vida: viver.