A vivacidade lisérgica de Alice

A busca pelo Coelho Branco pode sugerir uma dezena de interpretações, centenas de metáforas, e marcar o início de diversas jornadas, como é no caso da de Alice, que em busca do mesmo animal felpudo acaba entrando em sua toca e caindo no País das Maravilhas, um lugar que mais parece ter saído de uma experiencia psicodélica intensa de um livro infantil por conta da explosão de cores, animais mesclados com objetos dando vida a novos seres vivos, sem falar dos personagens da narrativa, que mais parecem ter saídos de um hospício sem receberem alta.

Divulgação: The Walt Disney Company

Apesar disso, como um filme de 1951, do gênero de animação, consegue fugir do esquecimento e se tornar atemporal mesmo com todos os avanços da tecnologia? Ora, apesar de ter um enredo que é esquecível, a forma com que a historia é desenrolada, muito por conta do apelo visual, é o que a torna marcante. Uma experiencia totalmente sensorial por cada personagem que aparece durante o caminho de Alice e a cada passo que ela vai dando dentro do País das Maravilhas é mais uma dose que ingerimos desse universo.

Contudo, apesar de se tratar de uma historia de certa forma “infantil”, há uma versão obscura, que mais parece uma creepypasta, sobre a inspiração teria dado origem. Nessa versão, Alice é uma criança de 11 anos que tem esquizofrenia, e seus pais a internaram em um sanatório porque tinham vergonha dela. Lá, além de receber uma medição intensa, ela era violentada pelos funcionários, o que resulta em um significado para cada personagem e para cada simbolo na narrativa. Por exemplo, o coelho e seu atraso seriam uma referência ao tempo que ela contava para sair da clínica, o Chapeleiro Maluco seria seu melhor amigo pois era outro interno, o Gato de Cheschire era um dos enfermeiros que a violentava e o seu sorriso era resultado de uma tentativa de intimidação após violentá-la, a Rainha de Copas seria a diretora do sanatório, culminando numa conclusão em que Alice tenta fugir e é capturada, vindo a falecer após continuar sendo vítima dessa violência, tendo a historia divulgada porque uma das enfermeiras do sanatório registrou tudo em seu diário. No entanto, essa versão apenas se trata de uma lenda urbana, na qual inspiração de Lewis Carrol para a historia tão macabra quanto para compor essa mitologia dos bastidores.

Todavia, a Disney conseguiu transformar essa narrativa em algo musical, lembrado com carinho pelo público infantil e oferecendo uma interpretação extra para o público adulto, relacionada as situações desconexas de Alice, fato este muito bem representado pela personagem da Lagarta azul, que com seu narguilé deixa a conversa no ar, literalmente, ou quando mostra para ela que se quiser crescer deve comer a primeira metade do cogumelo, e se quiser diminuir deve comer a segunda, o que pode ser interpretada como uma metáfora da vontade de crescer da Alice, da modificação corporal, da transição da infância para adolescência, ficando mais claro na cena em que ela se torna gigante dentro da casa do Coelho Branco.

Divulgação: The Walt Disney Company

Como se essa loucura não fosse suficiente, ela é ratificada no encontro de Alice com o Gato de Cheshire, com o seu notável sorriso enquanto se torna invisível, dando indicações a ela para um caminho, na qual todas as placas apontam para todos os lugares, fazendo com que ela não saiba para aonde ir, o que fica mais claro com esse diálogo:

-Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar para ir embora daqui? Para mim, acho que tanto faz.

-Nesse caso, qualquer caminho serve.

-Contanto que eu chegue a algum lugar.

-Ah, mas com certeza você vai chegar, desde que caminhe bastante.

-Isso depende muito de para onde quer ir.

Após esse encontro, Alice segue o caminho diretamente para a festa do chá do Chapeleiro Maluco, da Lebre de Março e do Arganaz, em que ela é bombardeada de charadas por eles, nunca conseguindo respondê-las ou beber o dito chá dos anfitriões, fazendo com que ela se sinta indignada e abandone a festa. Esse momento acaba por ser o ápice do nonsense da animação, com um chapeleiro e uma lebre falando coisas confusas, criando momentos surrealistas com suas xícaras e pires, levantando a dúvida (ou afirmando) de que aquela bebida poderia ser um simples chá alucinógeno.

Divulgação: The Walt Disney Company

O desfecho da narrativa se dá no julgamento de Alice pela Rainha de Copas, na qual ela é acusada de ter feito a Rainha passar por uma situação embaraçosa, que mesmo após todo o processo acusatório, Alice é condenada e obrigada a fugir para evitar a sentença: sua decapitação, atravessando todos os caminhos que seguiu até chegar no jardim real, e voltando até a porta com a maçaneta falante aonde tudo começou, espiando pela fechadura ela mesma dormindo debaixo da árvore em que o filme se inicia, mostrando que ela estava apenas sonhando com aquilo tudo.

Portanto, Alice no País das Maravilhas se tornou uma obra marcante por todo o delírio surrealista que a personagem-título passa, a viagem alucinógena sensorial que consegue transcender os limites da realidade, o estrondo multicolorido vivaz do País das Maravilhas, tudo isso feito em uma época na qual a cultura lisérgica era praticamente inexistente, deixando reflexões sobre nós mesmos e o que nos a entrar na toca do Coelho Branco. Afinal, quantas jornadas já perdemos por não corrermos atrás dele?