A vivacidade da velhice feminina no cinema latino-americano

Qual o limite da longevidade? Se for pensar em termos teóricos, estudos apontam para uma média entre 60 e 80 anos na América Latina. Na prática, a realidade é outra, principalmente pelos olhos de uma mulher. Diante de uma sociedade misógina e conservadora, poluída por ideais que servem apenas para inferiorizar o ser humano a serviço de uma cultura capitalista e homogênea, as mulheres a partir, digamos, dos seus 50 anos são esquecidas em sua plenitude da sociedade. Suas presenças tornam-se limitadas à imposições sociais, como ser avó, ter um casamento duradouro, sofrer com a menopausa, preparar a aposentadoria, e suas instâncias básicas enquanto seres humanos pensantes, como desejos, sonhos e pensamentos, são descartados. Não é uma mera coincidência, portanto, não haver um número satisfatório de obras que representem as diferentes facetas desta fase da vida feminina.

Contudo, algumas obras voltaram o seu olhar para este rico momento, quase como um renascimento feminino diante de todos os obstáculos físicos e sociais, uma reinvenção do que é ser mulher e humano, e se propuseram a explorar este universo: o dominicano Dólares de Areia, o chileno Gloria, o paraguaio As Herdeiras e o brasileiro Aquarius são alguns desses exemplos que ousaram e criaram roteiros, com certos simbolismos, que elevam as particulares de cada personagem, mostrando que não há um jeito certo de viver a meia ou terceira idade. Em comum, estes filmes trataram de utilizar os significados simbólicos e literais da dança e do sexo/intimidade. Desde que a sociedade entende-se como tal, há uma construção em torno do sexo que o coloca enquanto transição da inocência para o amadurecimento, de uma moeda que invalida o valor de uma mulher.

Quando, então, a prática sexual é iniciada, ela não serve aos desejos femininos: é apenas um caminho para reproduzir os padrões machistas: engravidar, ser mãe e oferecer prazer ao homem. Uma mulher que assume uma postura contrária da imposta, é logo silenciada e difamada. Afinal, está ousando de uma liberdade que não lhe pertence. É um julgamento preto no branco, ponto final. Nos filmes citados acima, esse jogo se inverte e o sexo ganha outros significados sociais e individuais. São ferramentas de conhecimento próprio e de empoderamento. Em Aquarius, filme dirigido por Kleber Mendonça Filho, que aborda a luta de Clara contra o sistema mobiliário em prol da preservação do prédio no qual mora e é visto como monumento histórico, a personagem de Sônia Braga é independente em muitos sentidos da palavra. Sua trajetória desde o início é marcada por uma irreverência e consciência de si, de modo que ela sempre defende seu lugar na sociedade, seus pensamentos e desejos. Contra a maré do moralismo barato, Clara é uma mulher que abraça a sua sexualidade e não tem a mínima intenção de abandoná-la. Sua libido é uma das suas características que refletem na discussão contemporânea acerca da liberdade sexual feminina.

Em uma das cenas, a personagem convida um garoto de programa para ir à sua casa, uma atitude que por si poderia ser vista sob maus olhares. Em controle total do seu objetivo para a noite, Clara não perde tempo e faz questão de deixar claro quem estará dando as cartas naquela noite. Sentados no sofá, os dois conversam rapidamente antes do início do sexo e suas palavras definem o tom da cena. Com uma taça de vinho na mão, símbolo da liberdade dionisíaca, ela, em total compreensão do seu poder enquanto contratante do serviço, diz “Eu quero que você vá para embora”, surpreendendo o prostituto. Essa frase é um indício da vantagem da personagem sob o outro, o que inverte as noções predispostas do ser mulher e ser homem. Na maioria das vezes, é o homem que tem o poder de comprar o prazer da mulher por meio da prostituição, seja ela de luxo ou não, de modo que pouco fala-se da situação inversa para além dos questionamentos válidos sobre o efeito da profissão em si.

Logo depois, Clara o desafia ao dizer “Eu quero que você me coma”, reafirmando a ideia de que o homem esta noite é apenas um joguete em sua mão. Vestida em apenas uma blusa branca, ela senta em seu colo para iniciar o coito que é representado de forma muito realista e coerente para a idade dela: ele cospe em sua mão para esfregar no órgão genital, criando a lubrificação que o corpo feminino já não produz com tanta eficácia. Apesar de passar despercebido por muitos, este detalhe atenta para o fato de que, apesar das dificuldades corporais oriundas do envelhecimento, nada há de impedir que ela suprima o seu desejo ao mesmo tempo que reafirma a sua idade, normalizando-a e evidenciando uma vivacidade que muitos relacionam apenas com a juventude. 

Em um dado momento, o jovem tenta acariciar os seios de Clara, que o impede direcionando ao seio esquerdo por conta de uma mastectomia. De forma muito natural e honesta, a cena mostra que Clara está confortável em seu corpo e a escolha de não exibir suas cicatrizes não é um ato de fraqueza ou vergonha, mas sim de privacidade. É algo que apenas diz respeito a ela e em nenhum momento diminui a sua feminilidade, algo que nesses casos é constantemente invalidada. Pelo elemento do sexo, que é apresentado sem nenhum teor íntimo, o roteiro constrói uma personagem que usufrui do seu direito de liberdade e exalta a personalidade desta mulher que é independente, com fortes opiniões sobre o mundo ao seu redor e com controle total de diversos aspectos da sua vida que para muitas é negada. Aqui, o sexo é um elemento que contribui para o paralelo entre o controle pessoal e coletivo por parte de Clara. Já em Gloria, cuja direção é assinada por Sebastián Lelio, o sexo tem uma conotação um tanto quanto diferente, embora ainda caminhe na linguagem libertária.

No auge dos seus 58 anos, Gloria, vivida por Paulina Garcia, é uma mulher que, divorciada há mais de 10 anos, segue uma vida solitária e, no entanto, consegue se manter esperançosa em busca de mais um grande amor entre as idas aos bailes de dança. Uma noite, a personagem conhece Rodolfo, com quem começa um romance marcado por clichês, aventuras, decepções e, acima de tudo, entrega. Uma das cenas mais marcantes da relação dos dois e que reflete muito essa postura destemida da personagem, que na primeira oportunidade se aventurou em bungee jumps e paintballs, acontece em um quarto de hotel durante uma viagem do casal. Cansada de insistir para que Rodolfo imponha mais limites entre ele e sua ex-mulher, Gloria desiste de ir embora quando o parceiro assume uma atitude mais assertiva. Assim como Clara, visto que a reação do homem foi por conta da sua imposição, Gloria se sente validada ao ter seus sentimentos respeitados e assume também total controle da situação. De frente para ele, a mulher fica completamente despida, com todos os efeitos do tempo no seu corpo a mostra, como uma reafirmação da sua forte presença enquanto uma mulher com quase 60 anos. A ideia que transpassa pela cena é de súplica ao mesmo tempo que é de uma entrega extremamente empoderadora. 

A personagem desafia o parceiro a enxergá-la exatamente como ela é, sem mais nem menos, pois seu corpo, sua alma, é tudo o que ela tem a oferecer e são entradas para algo muito maior que ambos podem viver. A sexualidade em si torna-se secundária e oferece espaço para uma intimidade, para um desejo de estar com o outro não só fisicamente como espiritualmente. Diferente de Aquarius, o filme de Lelio aborda a naturalização do corpo e o controle sobre o próprio corpo a partir de um outro viés, embora também baseado no realismo. Sem simbolismos poéticos, a escolha de não exibir naquele momento uma parte do corpo de Clara mostra, de forma prática, que ter conhecimento daquilo seria uma exibição sem propósito, pois o encontro era apenas carnal e poderia ser alcançado sem que ela tivesse que despir suas intimidades. Em contrapartida, a poesia do filme chileno é sutil e ao mesmo tempo grandiosa: o corpo nu da personagem ecoa o descortinamento de quaisquer cortinas entre os dois; é uma quebra das barreiras emocionais que pudessem entrar entre os dois.

Em As Herdeiras, de Marcelo Martinessi, o desejo sexual já é explorado por uma via ainda menos explorada no cinema e na vida real: pelo ato da masturbação, ainda visto como um tabu. Chela, interpretada por Ana Brun, é uma mulher provavelmente na faixa dos 60 anos que precisa reinventar a sua vida quando sua parceira de anos é presa por acúmulo de dívidas. Para conseguir arcar com as demandas financeiras, ela, por conta de uma observação de uma amiga, vira taxista e em durante uma das tardes de trabalho conhece a jovem Angy. As duas logo se conectam e o vigor da jovem começa a influenciar nos interesses e sentimentos da mais velha. Em uma das cenas, logo após alguns momentos de tensão sexual, como quando Angy ensina Chela a tragar um cigarro no carro, de modo que as duas trocam olhares em um clima sensual atribuído ao fumo, a mais velha se masturba antes de dormir.

O ato, em sua primeira instância, é uma forma de reconhecimento da libido, que é despertada por esta nova relação com a qual Chela percebe que ainda tem desejos que, na correria da vida, foram esquecidos no meio do caminho. É como se Angy fosse um espelho de Chela que constantemente a faz relembrar de quem ela já foi um dia e que, se ela ainda é capaz de sentir certas emoções, é sinal de que ainda há tempo de viver. Além disso, a masturbação, embora seja um reconhecimento direto da sexualidade da personagem, é uma forma também que o roteiro encontra, implicitamente, de mostrar como a personagem é reprimida, tendo que recorrer a este ato solo porque ainda tem amarras que a impedem de agir sobre essas vontades que estão retornando. 

Ao mesmo tempo que há a ânsia, há inseguranças que foram acumuladas com o decorrer da vida e não são tão fáceis de serem descartados. A linguagem corporal da personagem reforça ainda mais essa noção: sentada, com uma luz quente no canto da cama acesa, em uma posição retida de costas para a câmera. É um retrato do desconforto, que fica claro que não é algo que ela performa com frequência, e da sensação de inferioridade com relação à Angy. Afinal, ela se enxerga como uma senhora que nada terá para oferecer a esta jovem. é uma senhora e, portanto, não terá nada a oferecer para esta jovem. Com todas essas nuances, o simbolismo da masturbação é totalmente ressignificado para além do sentido relacionado à descoberta do seu corpo na adolescência e da libido excessiva durante grande parte da juventude e início da fase adulta. Neste filme, a performance masturbatória evidencia que a personagem, apesar do medo, está disposta a reconhecer o seu corpo e todas as sensações que transpassam por ele. Assim como os jovens, as mulheres na terceira idade precisam compreender, novamente, o funcionamento do seu corpo e qual a melhor forma de lidar com ele.

É como um renascimento, um despertar de uma vivacidade que está morta dentro dela. É o primeiro passo para ela ir ao reencontro de si mesma e, embora ela não consiga se entregar a ponto de praticar o coito, já é o bastante para que ela comece a ver o mundo a partir de novas perspectivas, de impulsos que ainda vão permitir que ela viva de forma plena os anos que ainda lhe restam. Ela sabe agora que é capaz de sentir como qualquer ser humano, independente de idade. Distante da representação de todos os outros três filmes, o dominicano Dólares de Areia, de Laura Amelia Guzmán e Israel Cárdenas, aborda a desigualdade social do local por meio de um relacionamento homoafetivo e se debruça sobre uma sutileza que faz do sexo uma porta de entrada para uma intimidade que se manifesta para além do encontro literal dos corpos. Juntas, a jovem Noemi e Anne, uma francesa de bastante idade pertencente da classe alta interpretada por Geraldine Chaplin, mantém um jogo de interesses: solitária, a mais velha contrata os serviços de acompanhante da jovem e acaba se apaixonando por ela, mesmo sabendo que Noemi não necessariamente retribui o sentimento. 

Durante todo o filme, no entanto, há detalhes que evidenciam sentimentos que permeiam o envelhecimento, principalmente com relação a solidão enquanto ainda há o desejo de se ter alguém ao seu lado para criar novas memórias. Entre as cenas, como elas nadando juntas no rio, caminhando pela praia ou andando de moto abraçadas, algumas se destacam pela delicadeza e pela potência emotiva que carrega. No quarto, Anne, completamente nua, filmada de costas, evidenciando a fragilidade de seu corpo, deita no colo de Noemi, que começa a fazer carinho no seu cabelo. Para além do diálogo, no qual elas comentam sobre cansaço e sair para o centro, a cena mostra como Anne se sente confortável ao lado da jovem e que, apesar da diferença de idades, não tem inibição alguma em mostrar o seu corpo como ela é. Uma intimidade que vale para Anne muito mais do que qualquer encontro sexual.

É o fato de ser tocada com carinho, de se sentir segura ao lado daquela pessoa, de ter alguém com quem confiar as banalidades do dia, que impregnam o seu corpo com um frescor de vida e paixão que anulam, nem que seja somente por alguns momentos, a constante solidão da velhice. Ela se sente vista pela única pessoa que ela quer que a veja e, por isso, não importa se o espectador não está vendo por completo. É algo que pertence somente a elas duas. A relação das duas o tempo inteiro é pautada pelo primor dos detalhes e suas simbologias para além do que é dito explicitamente. Quando elas estão em um lago, sozinhas, há uma beleza em ver as duas compartilhando a vida, compartilhando elas mesmas. As duas entram no lago de mãos dados, como um ato de carinho e convite para viverem momentos simples da vida.

A intimidade é representada a alegria, confiança e reconhecimento enquanto ser humano que Anne vive com a jovem. O lago, junto a esse nado compartilhado, também incita certas simbologias que fortalecem essa troca pessoal entre duas, como a imagem de renovação e paz que naquele espaço ainda é de direito completo de Anne. Elas nadam como se não tivessem nenhuma preocupação no mundo, a não ser permitir que elas vivam esse momento em todo seu esplendor sem as censuras da vida real com relação a elas serem um casal de uma idosa e jovem que vende a sua companhia. Assim como o sexo/intimidade, a dança promove diferentes perspectivas sobre um mesmo assunto. Enquanto uma atividade pautada no movimento, a disposição do corpo pode exprimir a ideia de liberdade, controle, insanidade, autoconhecimento, sensualidade e assim por diante.

Na maioria dos filmes analisados, a dança é inserida mais de uma vez com o mesmo propósito de retratar as nuances da personalidade de cada personagem. Em Aquarius, Clara, sozinha em casa, coloca Roberto Carlos para tocar e começa a dançar sozinha, de forma lenta, crescente e serena. Considerando todo o background da personagem, cujo alguns elementos foram citados acima, a movimentação mostra como ela se sente em paz com a sua companhia e não tem uma necessidade de ter alguém constantemente ao seu lado. Sua presença, enquanto mulher no auge da sua terceira idade, é suficiente para ela mesma, para sua felicidade, e quando há um desejo maior, como transar, há sempre outros meios para obtê-lo. Além de potencializar essa individualidade, o fato dela estar dançando ao som de uma música antiga pontua ainda mais a conexão que ela tem com o seu passado, com a sua história, com momentos que a fizeram quem ela é.

Ela não anula o que já viveu, pois é preciso olhar para trás para continuar a transformação enquanto ser humano, aprendendo com os erros, acertos e vivências gerais. Aqui, de forma menos explícita do que a luta da personagem em manter uma construção histórica de pé como resquício de um tempo que já passou, esse elemento do roteiro remete ao traço revolucionário da personagem: assim como ela resiste pela preservação histórica do seu bairro, ela também se resigna a acharem que velhice é sinônimo de dependência, acomodação e decadência. Mais do que nunca, pode ser um momento de valorizar e evoluir quem se é. Afinal, assim como na contemporaneidade, só há crescimento existe se houver respeito e reconhecimento do passado. Em As Herdeiras, a dança tem o mesmo teor de leveza que no brasileiro. 

Apesar de ser uma cena rápida, que passa despercebida por olhares distraídos, quando Chiquita, que será presa, dança no quarto há uma referência à despreocupação da personagem. Ela dança porque está em paz, porque não tem medo e, mais importante, porque ainda está viva. O fato dela ir presa não irá anular isso e ela enxerga esse revés como apenas mais um contratempo que faz parte da vida. É uma representação da sua personalidade desprendida, otimista e corajosa, que muitos acreditam que é esvaecida pelo tempo, como se apenas jovens pudessem ter o direito de arriscar, errar, aprender com o erro e ansiar por dias melhores e mais oportunos. Para Chiquita, sua dança é a esperança viva de que tudo irá passar e ela não precisa perder o bom humor, o olhar entusiasmo e o deleite pela vida por conta disso. No filme de Sebastián Lelio, a dança é um hibridismo das nuances exploradas nas duas obras. Se em grande parte do filme a arte era usada como uma forma de controle sobre a aquisição do romance e de representação da personagem, na cena final era é atribuída de um significado totalmente diferente.

No meio dos convidados do casamento da filha da sua melhor amiga, Gloria, ao som da música homônima, lentamente vai se soltando no ritmo da canção, como se estivesse em um processo de libertação de todo o peso que carregou consigo durante todos os anos em busca de de um romance e do romance em si com Rodolfo. Dessa vez, ela dança sozinha e se sente completa. Ela percebe que não precisa necessariamente estar com alguém para sentir íntegra; sua presença basta para lhe dar esperança no futuro, desde que ela nunca se abandone e deposite a saída para a solidão necessariamente em um amor. Ela pode viver todas as aventuras que se propõe sozinha, com amigas e, se assim for, com um parceiro ao seu lado. É um momento libertador para ela.