A triste atualidade presente em “Filhos da Esperança”

Nota do Filme :

Acho que foi em 2008 ou 2009 quando assisti a “Filhos da Esperança” pela primeira vez. Naquela altura, eu ainda não era crítico e ainda não tinha decidido que faria do cinema uma carreira, nem sabia quem era Alfonso Cuáron, diretor desse filme e muito menos sabia que esse filme era considerado o melhor de sua carreira e que tinha sido lançado em 2006.

Quando terminei de ver, em uma das madrugadas que passava acordado nas férias, eu estava chocado, o filme me prendeu do começo ao fim, me deixou tenso e eu tinha achado um absurdo como toda aquela guerra, aquela crise, desespero, medo, sociedade tomada pelo ódio, tinha achado otimista a motivação que o personagem de Clive Owen havia encontrado em Kee e na esperança que essa mulher literalmente carregava junto a seu corpo.

10 ou 9 anos depois, como dito, a data da primeira vez que assisti o filme é incerta, revi “Filhos da Esperança”. Dessa vez eu já havia escolhido o cinema como profissão, já sei muito bem quem é Alfonso Cuáron e entendo porque esta obra é considerada a melhor de sua carreira, porém, um sentimento não mudou: o choque em relação ao que tinha acabado de assistir.

Porém, dessa vez o choque é diferente, o filme me prendeu do começo ao fim, me deixou tenso e eu ainda acho um absurdo a guerra, a crise, o desespero, o medo e ainda acho otimista a esperança que Kee literalmente carrega junto a seu corpo, mas, com a diferença de que tudo, ou quase tudo, que Cuáron mostra com tamanho talento, se tornou realidade.

Escrito a 10 mãos, o filme conta a história de Theo (Clive Owen), que vive em uma sociedade caótica. Crise econômica, crise de imigrantes e principalmente, ódio dominando todas as camadas sociais, ataques terroristas são frequentes, uns lutam pelos direitos iguais, outros pelo mantenimento do sistema, poucos são pacíficos, a água e outros recursos naturais estão acabando e há uma crise de fertilidade, ninguém é capaz de gerar um filho, alie isso ao ódio acima, já que essa crise alimenta o machismo e sexismo já bem gordos nas pessoas.

Theo tem como objetivo ajudar Kee (Clare-Hope Ashitey), uma mulher grávida de oito meses a chegar de forma segura em um barco que a levará para um projeto chamado “Projeto Humano”, nele ela terá a ajuda necessária para criar seu bebê e talvez resolver a crise de fertilidade. Porém, os dois precisam lutar contra os dois polos da sociedade que estão em guerra: o governo atual, que quer manter o sistema caótico e os ativistas que inicialmente ajudaram Kee, mas querem o bebê para si, não para ajudar a sociedade e sim para usá-lo em seus próprios benefícios.

A obra é quase documental, pois, infelizmente, prevê um mundo que não sabe lidar com as crises e que quer acreditar em medidas rápidas e eficazes que apenas alimentarão o ódio vigente. A guerra não acabará com mais guerra, porém, no filme as pessoas apenas guerreiam mais, o ódio não irá finalizar o ódio, ele apenas irá continuar fazendo as pessoas brigarem por nada ao invés de se ajudar.

Esse ar documental é transmitido através da tensão constante, seja por vermos pessoas morrendo quase o tempo todo, mesmo que elas não sejam o foco central da cena, seja porque a câmera de Cuáron e Emmanuel Lubezki (o brilhante diretor de fotografia) faz o público ver os absurdos daquela sociedade para chocar e também para transmitir a sensação de tudo aquilo é normal. Para isso, os movimentos, principalmente do segundo ato para frente – justamente onde o filme fica mais chocante – são frequentes, com o diretor evitando ao máximo fazer cortes secos, ele quer que o público veja tudo o que acontece como se ele estivesse vivendo naquela sociedade.

Assim, vemos os refugiados presos em gaiolas e sendo separados de seus conhecidos como se fossemos eles, vemos os crimes cometidos contra a humanidade – derrubada de patrimônio histórico, desvalorização das escolas (na cena da escola quebrada), falta de união realizada pela junção das pessoas das mais diferentes nacionalidades, falando os seus próprios idiomas, sendo que o outro não entende e claro, as propagandas e a mídia, não contando a história como ela realmente aconteceu – tudo de muito perto, já que a câmera se aproxima de maneira gradual das cenas, usando primeiro plano e plano americano de forma recorrente.

Ou seja, o panorama que o diretor deseja passar é de caos, um caos gerado por pessoas que pensam apenas nos seus próprios interesses, gente com influencia o suficiente para manter o ódio, apenas para lucrar e gerar lucro para si mesmo, destruindo a história, acabando com a educação, ignorando a situação pior em outros lugares e sem querer ajudar esses outros locais, além de, claro, criar o ódio seletivo, pois, caso contrário, pode ser que esse sentimento se vire contra eles mesmos.

“Filhos da Esperança” é um filme que parece ter profetizado certas cenas do mundo atual, não apenas na ideia, mas na prática. Com certeza Cuáron não estava pensando nisso enquanto filmava a obra, porém, há certas escolhas do diretor que podem indicar uma certa premeditação em suas atitudes.

Uma delas já foi dita aqui, os movimentos de câmera para sustentar a constante tensão social, ao mesmo tempo em que aborda diversas questões como educação e habitação. Outro ponto é como tudo na projeção é cíclico, Theo começa sem querer se posicionar, mesmo sabendo que isso é impossível, ao ser abordado pela sua ex-mulher Julian (Julianne Moore) para ajudar Kee, ele percebe como o ódio das pessoas estava prejudicando o mundo, para logo após isso, descobrir que o ódio passou também para o lado que pensa que é o “bem” e assim, pede ajuda para um amigo, Jasper (Michael Caine), pessoa mais velha, conhecedora do mundo anterior ao atual, que o acode para tomar alguma atitude e no terceiro ato, ele também perceber o que tem que fazer graças a uma mulher, ter ajuda de pessoas mais velhas e assim, ficar próximo de cumprir seu objetivo.

Outra coisa é como as pessoas, independente de quem sejam ou de onde sejam, podem se ajudar, basta ter empatia, até porque, Theo é um homem branco, bem sucedido, que ajuda uma mulher negra, imigrante, grávida, que o faz mudar com a conversa, troca de ideias, um mutualismo que funciona para gerar uma nova ideologia e esta sim, pode salvar o mundo.

E como último ponto que pode ter sido premeditado por Cuáron, o sexismo e machismo que são mantidos como sustentáculo do ódio, o título do filme em inglês “Children of Men”, significa “Filhos de Homens”, ou seja, a sociedade dominada pelo patriarcado que escolhe esquecer do papel da mulher, que é o principal na geração de um bebê e o fato de todos os personagens ali, com exceção de Theo (porque foi mudado por Kee), Julian, Miriam (Pam Ferris) e Kee, pensarem que a criança a nascer é um menino e não uma menina, mostra como o sistema acostuma as pessoas a terem como certeza que teremos um salvador e não uma salvadora.

10 ou 9 anos depois, imagino que a data de hoje também seja incerta na minha cabeça, espero rever “Filhos da Esperança” e continuar sendo crítico, continuar tendo o cinema como profissão, ser mais fã de Alfonso Cuáron e saber que esse filme é considerado o melhor de sua carreira.

Espero também que ele me choque e me deixe tenso, não por causa de um futuro que nunca imaginei ou de um presente que vi parcialmente (espero) acontecer,  mas sim pelos absurdos retratados ali estarem distantes e por estarmos vendo “Filhos da Esperança” em uma época mais esperançosa, menos odiosa e claro, que outras pessoas, vejam esse filme pela primeira vez e pensem nele como um futuro inimaginável e muito, mas muito distante de acontecer.