A poesia marginal de “8 Mile”

A sarjeta é inspiração recorrente de diversos artistas que de lá saíram, sempre abordando sobre a dureza da vida que tiveram antes de alcançarem reconhecimento pela suas obras, mostrando que há beleza e poesia no submundo da sociedade, para qual ela fecha os olhos e desdenha, tendo que ocorrer a reafirmação dessa parcela pelo seus artistas, tais como Charles Bukowski ou o protagonista do longa do título: Eminem.

Apesar disso, o filme não é baseado inteiramente na vida do rapper, ele apenas utiliza de alguns elementos para fomentar a narrativa, tendo um ponto de partida em um enredo que não visa ilustrar uma biografia, e sim contar uma historia sobre um jovem branco que possui o sonho de vencer na vida com as suas rimas, vivendo em um lugar predominado por negros.

Contudo, quem é familiarizado com a obra do cantor conhece os temas que preponderam em suas canções e facilmente consegue-se reconhecer alguns do tópicos abordados no longa, como os problemas da relação dele com a mãe, o que acaba sendo recorrente em diversas composições, porém não têm-se a raiva e a fúria que ele possui, apenas retrata uma posição anterior a isso, o que ratifica ainda mais o caráter semi-biográfico do longa.

Com isso, o personagem interpretado por Eminem, que se chama Jimmy “Bunny Rabbit” Smith, acaba se desvencilhando ainda mais da persona do rapper, porém de forma verossimilhante, convencendo-o de que aquele é apenas mais um jovem do gueto que convive com os fatores da pobreza extrema, preconceito racial, brigas de gangues e problemas familiares, criando empatia em qualquer um que reconheça ou não possua os privilégios da parte predominante da sociedade.

E Bunny Rabbit é um jovem como qualquer outro: possui um sonho, almeja uma vida melhor, tem problemas amorosos e familiares, dispõe de amigos com os quais consegue matar o tempo. Ele não foge do padrão da juventude, porém ele utiliza sua realidade para escrever seus versos de forma que possa se sobressair e assim conseguir o que tanto pretende.

Isso é visível nos versos que ele utiliza durante a ultima batalha de rap do filme, na qual ele utiliza todos os seus defeitos e problemas, reconhecendo-os para deixar o seu oponente sem saber o que dizer, levando a plateia ao delírio por conta do que foi dito, como se pode ver abaixo:

Agora todos do 313
Levantem a porra das mãos e vem comigo
Todos do 313
Levantem a porra das mãos
Olha, olha
Agora que ele está aqui parado
Notem que esse homem nem levantou as mãos
O Mundo Livre já cansou de você
Agora quem tem medo do grande lobo mau?
1,2,3 até o 4
1 Pac,2 Pac,3 Pac,4
4 Pac,3 Pac,2 Pac,1
Você é o Pac, ele é o Pac
Não há Pac, Nenhum!
Esse cara não é nenhuma porra de MC
Eu sei tudo que ele vai falar contra mim
Eu sou branco
Eu sou a porra de um vagabundo
Eu moro em um trailer com minha mãe
Meu camarada Future de branco é puxa saco
Eu tenho um amigo idiota chamado Cheddar Bob
Que atirou na própria perna, com a própria arma
Eu tomei uma surra desses 6 idiotas
E o Wink faturou minha mina
Mas eu ainda estou aqui gritando ”Foda-se o Mundo Livre”
Nunca tente me julgar cara
Você não sabe porra nenhuma do que passei
Mas eu sei algo sobre você
Você estudou em Cranbrook, aquela escola particular
Qual o problema, mano? Cê tá confuso?
Esse cara é um gangster? Porque seu nome real é Clarence
E Clarence vive em casa com ambos os pais
E os pais de Clarence tem um belo casamento
Esse cara não quer batalhar, ele travou
Porque não existe essa historia de meio bandido
Ele tá assustado pra caralho
Ele tá assustado pra olhar para a porra do seu livro escolar,
Foda-se o Cranbrook

Foda-se a batida, eu vou sozinho
Foda-se o Papa Doc, foda-se o relógio, foda-se o trailer, foda-se todos
Fodam-se vocês se duvidam de mim
Eu sou a porra de um branco pobre, eu digo com orgulho
E foda-se essa batalha
Eu não quero ganhar
Estou fora
Aqui, conte a essas pessoas algo que não sabem de mim

Todavia, o que chama atenção, além do linguajar utilizado ou da fúria expressada pelo personagem, é a sua sinceridade, a forma como que ele conta sobre a realidade em que se encontra, face ao contexto social que está inserido. Como o menor dos problemas ou um simples momento afetam o resultado final de alguma decisão, inspiração para uma letra ou resolução de um conflito posteriormente.

Portanto, não se deve menosprezar a arte marginal com um preconceito decorrente de uma visão pejorativa da pobreza, pois, além de contribuir para isso, dificulta ainda mais a desconstrução de estigmas sociais consolidados. É válido afirmar que tragédias, sofrimentos e angústias possam compor a arte de alguém, porém o que não se pode deixar acontecer é que apenas desse jeito essas pessoas possam crescer artisticamente, criando assim um ciclo ininterrupto.