A Filosofia de Zaheer

A sequência de Avatar – A Lenda de Aang acompanha a próxima reencarnação de Aang, Korra. Ao contrário da série original, que teve como foco um vilão principal por todas as suas temporadas, A Lenda de Korra trabalhou com vilões individuais para cada Livro.

Ainda, o seriado buscou trazer vilões mais complexos. Isto porque, por mais qualidades que a série original tivesse, Ozai, principal antagonista da trama, jamais chegou a ser um personagem bem desenvolvido. Ele não contava com qualquer característica relacionável e o seu único desejo era a total dominação mundial, o que o tornava um tirânico unidimensional.

Nesse sentido, Zaheer, apresentado no Livro Três da série, conta com maior atenção por parte dos roteiristas. Inclusive, para muitos, é considerado o melhor vilão da saga. Desse modo, o presente texto busca analisar a filosofia do personagem de modo a demonstrar as suas motivações e razões de agir.

Sendo assim, o texto conta com leves detalhes do Livro Um e Dois. Ainda, há fortes spoilers acerca da trama do Livro Três.

Apresentação e Desenvolvimento

“Instinto é uma mentira, contada por um corpo temeroso, esperando estar errado.”

Preso durante 13 anos após uma tentativa infrutífera de capturar Korra, Zaheer era mantido em uma prisão tida como inescapável[1]. Sua fuga foi possível graças à descoberta de sua dominação de ar, fruto dos eventos do Livro Dois. Assim, desde o começo a série é extremamente competente em criar uma atmosfera de ameaça para o personagem, uma vez que, mesmo sem habilidades especiais, era considerado perigoso o bastante para ser afastado da sociedade de maneira tão forte.

 

 

Sabemos, também, pela experiência da sua evasão, que a aura de calmaria que exala não faz jus à agressividade que é capaz de demonstrar em combate. Com o acréscimo da dominação de ar o personagem se torna uma ameaça ainda maior.

Nesse sentido, após se libertar conseguiu, sem dificuldade aparente, auxiliar a fuga de seus companheiros Ghazan, Ming-Hua[2] e P’Li[3], respectivamente mestres na arte da dominação da terra[4], água e fogo[5]. Devido às habilidades de cada prisioneiro, cada cela havia sido desenhada de maneira a suprimir a sua habilidade, o que tornava a fuga individual impossível.

 

 

Pode-se dizer, então, que a empreitada bem-sucedida de Zaheer justifica o temor que ele cria em seus adversários, dentre eles Zuko, personagem do seriado original. Em poucas cenas os criadores são capazes de cunhar um personagem a ser temido por alguém tão poderoso quanto a Avatar, o que aumenta o senso de insegurança também do espectador.

Tais detalhes não acrescem à filosofia do personagem, todavia, merecem destaque pois comprovam que o seu desenvolvimento não vem às custas da ameaça que representa à história e aos personagens. Ao contrário, o fato de contar com ideais mais humanizados apenas acresce peso ao inevitável confronto.

 

 

Filosofia e Objetivos

“Livre-se da corrente terrena. Entre no vazio. Esvazie-se e se torne o vento.”

As motivações de Zaheer são reveladas de maneira parcimoniosa, de modo que sempre há um ar de mistério quando age. Eventualmente[6], em um diálogo com Korra, revela fazer parte de uma organização conhecida como Lótus Vermelha que, segundo ele, busca trazer liberdade ao mundo.

A Ordem do Lótus Branca, origem do grupo do personagem, tinha como objetivo a partilha de conhecimento e busca filosófica pela verdade. Todavia, após o fim da Guerra dos 100 Anos, os membros da Ordem, então comandada por Iroh, saíram do anonimato e adotaram uma postura mais pública. Xai Bau, insatisfeito, desertou e fundou a nova organização pois acreditou que a Ordem havia se tornado mera serva do(a) Avatar.

O personagem enxerga a liberdade de modo tão essencial que se opõe a qualquer forma de poder constituído, figura de autoridade ou hierarquia. Nessa mesma conversa, o vilão lembra à Korra[7] que os eventos da série anterior decorreram justamente das ações de líderes que, supostamente, deveriam governar de modo pacífico.

 

 

O personagem, então, apresenta características anarquistas, de modo que, por mais que possa, eventualmente, existir algum chefe de Estado bem intencionado, Zaheer não crê em ceder parte do controle de sua vida a terceiros. Ao contrário, defende que um homem só é livre quando tem plena autonomia de si mesmo e não responde à qualquer figura hierárquica pois, para ele não há que se falar em liberdade quando ela está em constante ameaça de ser cerceada.

Para reforçar esse aspecto a série apresenta a nova Rainha da Terra[8]. Há, então, um comparativo concreto a ser feito. Isto porque por mais que não seja totalitária como fora Ozai, percebe-se que utiliza o seu poder de maneira abusiva ao forçar impostos em cidadãos pobres e encarcerar aqueles que julgue prejudiciais à sua Coroa[9].

Consequentemente, o personagem faz questão de ressaltar as suas motivações ao assassinar a Rainha da Terra[10]. Não se trata de um mero homicídio, mas sim de um ato revolucionário[11], repleto de significado que comprova que ele está disposto a ir até o final em sua jornada pela liberdade plena onde a fidelidade de um homem é para si mesmo, e àqueles que ama[12].

 

 

Admirador da cultura dos Nômades do Ar, válido ressaltar outro importante aspecto da filosofia de Zaheer. Assim como os monges, crê em se desapegar de bens terrenos de modo a alcançar maior iluminação espiritual. Dessa maneira, consegue adentrar o Mundo Espiritual com grande facilidade e, também, se transportar como se espírito fosse. Ademais, demonstrou a capacidade de utilizar o seu corpo físico ainda estando no Mundo Espiritual, algo que, até então, não havia ocorrido na série.

Seu desapego também permite que alcance técnicas que, segundo Tenzin[13], não eram utilizadas em milhares de anos. Após a morte de sua amada P’Li[14], o personagem deixa de ter qualquer ligação com o mundo terreno. Vazio, alcança o segredo da leveza e consegue, a seu bel prazer, voar.

 

 

O objetivo de Zaheer inclui, por extensão, o fim do Ciclo Avatar. Por mais que não seja expressamente dito no seriado, sua filosofia e visão de mundo nos permite entender o porquê. Afinal, por mais que o(a) Avatar não seja um(a) chefe de Estado, a globalização do universo da série faz com que ele(a) conte com inegável influência na política internacional.

Como resultado, o próprio presidente da Cidade da República busca de maneira constante o seu apoio para reforçar a garantia da ordem. Inclusive, assim como políticos, Korra conta com porcentagem de aprovação da população, o que reforça a figura pública que se tornou.

Na série, o Ciclo Avatar cria uma figura semelhante a de um chefe religioso. Nas ruas, conta com um tratamento diferenciado. Ainda, há templos espalhados pelas nações, cada qual com seus próprios sacerdotes que têm o dever de servir ao(à) Avatar e não ao(à) respectivo(a) chefe de Estado, fator esse que pode, inclusive, desencadear problemas quanto à soberania nacional da nação[15].

Válido ressaltar que, uma vez que deve manter o equilíbrio do mundo, o senso ético do(a) Avatar poderá ser aplicado em conflitos terrenos. Nesse sentido, um(a) Avatar com caráter corrompido poderia ser desastroso e resultar em danos irreparáveis. Além do mais, o fato de conseguir dominar os quatro elementos, bem como poder retirar/devolver a dominação de terceiros, confere ao(à) Avatar um poder incomparável, de modo que Zaheer entende que a sua própria existência representa uma ameaça considerável à liberdade individual, devendo, desse modo, ser eliminado(a).

 

 

Por mais que seja, de fato, um vilão, percebe-se que Zaheer deseja apenas ser livre, sendo meramente um senso de liberdade distorcido. Para ele, diferentemente de Ozai ou até mesmo outros vilões de A Lenda de Korra, poder não é um fim em si mesmo, sendo apenas um meio pelo qual conseguirá alcançar seu objetivo e, após, manter-se independente.

Inteligentemente construído, seu modo de pensar e filosofia pessoal fazem com que pareça quase humano, afinal, se vê como o herói de sua própria história. Sua meta e modo de agir fazem com que os espectadores se questionem, afinal, até que ponto somos realmente livres. São esses alguns dos sinais claros de um excelente antagonista, motivo pelo qual o Livro Três é considerado por muitos como o melhor da série.

 

[1] 3.01 – Um Sopro de Ar Fresco

[2] 3.02 – Renascimento

[3] 3.04 – Em Perigo

[4] Ghazan consegue, ainda, dobrar lava, habilidade considerada rara no Universo Avatar.

[5] P’Li consegue, inclusive, criar explosões, técnica conhecida como “dobra de combustão”, de maneira igual ao Homem Combustão, personagem do Livro Três da série original.

[6] 3.09 – A Emboscada

[7] Zaheer: A ideia de haver nações e governos é tão tola quanto manter o reino dos humanos e dos espíritos separados. Você teve que lidar com um presidente imbecil e uma Rainha tirana. Não acha que o mundo estaria melhor se líderes como eles fossem eliminados? Korra: Não. Digo, não concordo com o que fizeram, mas matar chefes de Estado não é a resposta. Zaheer: Não faz tanto tempo que os dominadores de ar foram quase dizimados graças ao desejo do Senhor do Fogo por domínio mundial. A verdadeira liberdade só pode ser conquistada quando governos opressores são derrubados. Korra: Mas isso não trará equilíbrio. Isso deixará o mundo caótico. Zaheer: Exatamente. A ordem natural é a desordem. Sabe quem disse: “O novo crescimento não pode existir sem, primeiro, a destruição do velho”? Korra: Não. Zaheer: O sábio Guru Laghima, um dominador de ar.

[8] 3.03 – A Rainha da Terra

[9] 3.10 – Vida Longa à Rainha

[10] Rainha: Você não se atreveria a atacar uma Rainha. Zaheer: Talvez eu tenha esquecido de falar algo a você. Eu não acredito em Rainhas. Você acha que liberdade é algo que você dar ou tirar por capricho, mas, para o seu povo, liberdade é tão essencial quanto ar. E sem isso, não há vida. Há apenas escuridão.

[11] Zaheer (via rádio): Atenção cidadãos de Ba Sing Se, eu tenho um importante anúncio a fazer. Há poucos minutos a Rainha foi morta por revolucionários, eu incluso. Não direi meu nome, pois minha identidade não é importante. Não vim para tomar o Reino da Terra. Acho que vocês já tiveram líderes demais lhes dizendo o que fazer. É hora de encontrarem o seu próprio caminho. Vocês não serão mais oprimidos por tiranos. De agora em diante, estão livre! Entrego Ba Sing Se de volta às mãos do povo.

[12] 3.13 – Veneno da Lótus Vermelha

[13] Filho de Aang e Mestre de Dominação do Ar.

[14] 3.12 – Entre no Vazio

[15] Essa ideia é trazida ainda n’A Lenda de Aang, quando Sozin confronta Roku após sitiar parte do território do Reino da Terra. Afirma que, por Roku ser cidadão da Nação do Fogo, devia lealdade ao Senhor do Fogo de sua nação. A questão não chega a ser trabalhada de maneira extensa em nenhum dos seriados, mas a menção ajuda a sedimentar o Universo Avatar como um mundo além do mostrado nas histórias.