“Em longas metragens, o diretor é Deus. Nos documentários, Deus é o diretor”. Alfred Hitchcock
Dentre os diversos gêneros cinematográficos, o de documentários costuma ser o menos popular. Para diversas pessoas, assistir a um filme é uma experiência de escapismo, de exercício da imaginação – algo que não poderia ser levado em conta para filmes documentais pelo fato de mostrarem histórias reais e personagens que de fato fizeram algo relevante e/ou interessante para a sociedade ou para algum grupo determinado. Porém, conforme dito por Spike Jonze – diretor de Her (Ela) (2013), Adaptation (Adaptação) (2002) e Being John Malkovich (Quero Ser John Malkovich) (1999) – “fazer um documentário é descobrir, estar aberto, aprender e saciar a curiosidade”.
O fato é: existem milhares de obras documentais dos mais variados assuntos. Claro, muitas delas não irão te chamar a atenção logo de cara, outras, não vão te agradar em momento algum. O que realmente importa é correr atrás de assuntos que te deixam interessado, instigado ou que te tragam algum tipo de familiaridade que a experiência valerá a pena.
Como brasileiros, temos o prazer e o orgulho de falar: um dos maiores documentaristas de todos os tempos era nosso compatriota. Eduardo Coutinho fez história e fez escola. Até hoje, ainda é referência no gênero, no cinema e até virou exemplo para os estudantes de jornalismo de todo o país. A forma com que conduzia a entrevista e retirava as mais sinceras e detalhadas histórias de seus personagens é algo para se admirar. É impossível não lembrar das figuras que retratou em filmes excelentes, como Santa Marta – Duas Semanas no Morro (1987), Boca de Lixo (1993), Edifício Master (2002) e As Canções (2011) – infelizmente, nenhum desses está disponível na plataforma de streaming.
A lista a seguir traz a indicação de cinco documentários que podem ser assistidos diretamente na Netflix, então agora você não tem mais desculpas! Ah, vale lembrar também que nós da Cinematologia já fizemos uma lista com “cinco documentários musicais“, é só conferir!
Os Capacetes Brancos (2016)
Nota do Filme :
Um grupo formado apenas por voluntários trabalha para ajudar as vítimas dos bombardeios diários nas diversas cidades do território sírio. Mesmo realizando um intenso treinamento na fronteira do país com a Turquia, os capacetes brancos ainda precisam lidar com os imprevistos e com o risco iminente de perder as próprias vidas na difícil missão de tentar salvar desconhecidos – e às vezes conhecidos – do soterramento e dos escombros.
Dirigido pelo britânico Orlando von Einsiedel, esse é com certeza o documentário mais forte e conflitante dessa lista. Ao mesmo tempo que temos as provas mais concretas da maldade humana – os bombardeios que tem como pretexto o extermínio do Estado Islâmico acabam matando mais civis do que membros do grupo terrorista -, também podemos enxergar uma ponta de esperança em ver que, para alguns, a vida de um desconhecido acaba tendo a mesma importância do que a de seus parentes mais próximos. Com uma abordagem bastante corajosa, o diretor acompanha de perto a ação do grupo durante algumas tentativas de resgate (bem sucedidas ou não). Talvez um pouco explícito demais para alguns, a obra não esconde as mais perversas atrocidades da guerra e os efeitos que elas podem trazer para aqueles que dela participam, direta ou indiretamente.
Depois de receber diversas críticas e comentários positivos, a Netflix comprou os direitos de distribuição da película. No ano seguinte ao seu lançamento, o filme venceu o Oscar de melhor documentário de curta duração (tem apenas 40 minutos). Vale lembrar que Orlando von Einsiedel também dirigiu o muito elogiado Virunga (2014), que concorreu ao prêmio de melhor documentário na mesma competição.
Laerte-se (2017)
Nota do filme:
Nesse documentário, Laerte fala sobre a aceitação de seu corpo e o fato de se enxergar como mulher depois de completar os seus 60 anos de idade. Além disso, debate alguns preconceitos vividos por pessoas que passaram pelo mesmo processo, fala sobre identidade de gênero e sobre certos tabus que ainda permeiam a sociedade. Considerado uma das cartunistas mais importantes do país, a artista ainda comenta como a mudança em sua vida refletiu em seu trabalho e em suas relações familiares.
Além de contar um pouco sobre a vida de uma figura que por si só já é muito interessante, o filme dirigido por Lygia Barbosa da Silva e pela jornalista Eliane Brum, tem o cuidado de realçar o lado humano da figura midiática que Laerte se tornou. Com perguntas incisivas e a insistência em contar uma boa história, a dupla conseguiu fazer com que a personagem central se abrisse por completo, deixando de lado as inseguranças iniciais que vemos na primeira cena do longa – Laerte chegou a trocar diversos e-mails com Eliane Brum explicando que não estava confortável em gravar em sua casa e naquele momento.
O maior trunfo do documentário é permear as transições de cenas e cenários com as charges e tirinhas da própria artista contando em imagens os sentimentos e/ou acontecimentos que foram descritos nos planos anteriores. Mesmo quem nunca ouviu falar de Laerte irá aproveitar a experiência por completo. Aqui, o que mais importa é enxergar o “interior” da protagonista do que apenas a sua fama e profissão.
13th (A 13ª Emenda) (2016)
Nota do Filme:
A décima terceira emenda aboliu oficialmente e continua a proibir todo e qualquer tipo de escravidão e servidão involuntária nos Estados Unidos. Com um olhar crítico e profundo, o documentário busca analisar atentamente o sistema prisional americano e revelar o histórico nacional de preconceito e desigualdade racial, além da “oportunidade de negócios” percebida por muitas empresas quando há um aumento do número de detentos em cárcere.
Dirigido pela cada vez mais consolidada Ava DuVernay, o filme é necessário e choca ao mostrar os abusos e absurdos causados pelo preconceito estrutural da sociedade americana – que poderia muito bem ser conferido quase que da mesma forma em território nacional. Com diversas imagens de aquivo, gráficos, dados atualizados e entrevistas com especialistas, a obra tenta desmascarar o sistema político e econômico por trás da prisão em massa de negros americanos (em comparação com detentos caucasianos) no decorrer das décadas.
Com uma indicação ao Oscar de melhor documentário, a película se mostra cada vez mais necessária para entender como funciona o mecanismo prisional que é pouco conhecido pela maioria das pessoas. Além disso, é importante para refletir sobre a sociedade em que vivemos – inclusive, pode nos ajudar a pensar um pouco mais à respeito de eleições e de vitórias de candidatos com o perfil de Donald Trump, por exemplo.
Life, Animated (2016)
Nota do Filme:
Aos três anos de idade, Owen Suskind, uma criança enérgica, falante e sociável, cai em um silêncio profundo. O diagnóstico dos médicos não foi nada animador: autismo com baixas probabilidades de retorno. Quase quatro anos depois do ocorrido, o garoto teve seu primeiro contato com as animações da Disney – elemento determinante para a sua recuperação. Depois de assistir aos mesmos filmes à exaustão, Owen começou a reproduzir, de maneira literal, as diversas linhas de diálogo dos personagens que aprendeu a amar.
Esse é um daqueles documentários em que é melhor substituir a pipoca por uma caixa de lencinhos de papel. A trajetória de Owen é tão marcante e complicada que fica muito difícil não se identificar e emocionar. O diretor Roger Ross Williams acerta ao ser sensível e dar todo o tempo do mundo para o protagonista. Acompanhamos as suas tentativas em conseguir um trabalho no cinema local – um de seus maiores sonhos; sua jornada de morar sozinho pela primeira vez; o relacionamento duradouro com sua namorada; e até mesmo seus encontros improváveis com um dublador que marcou a sua infância.
Life, Animated concorreu ao Oscar no mesmo ano que A 13ª Emenda (2016) e também não levou o prêmio de melhor documentário. Porém, é impressionante e satisfatório perceber que o cinema pode, de fato, mudar completamente a vida de uma pessoa – nesse caso, substituiu a quietude por uma alegre história de superação.
The Mask You Live In (2015)
Nos Estados Unidos, os homens tem uma maior chance de desenvolver algum tipo de transtorno de comportamento, de largar os estudos e/ou ser expulso da escola, de ter problemas com o alcoolismo, com drogas, de cometer algum ato de violência e até mesmo de cometer suicídio. Uma das possíveis explicações para esses fatos é a forma com que o mundo atual trata os meninos desde sua infância. “Isso é coisa de menina”, “homens não choram” e “vire homem” são só alguns exemplos de frases que praticamente todo homem irá escutar ao menos uma vez durante sua vida. A grande questão é: como sociedade, estamos falhando com nossos garotos?
O filme dirigido pela americana Jennifer Siebel Newsom busca discutir um pouco sobre o disfarce com uma “máscara” de masculinidade com o qual muitas pessoas ainda precisam se esconder para ser aceitos como membros “normais” e esperados pela sociedade machista e patriarcal na qual estamos inseridos. O filme traz a opinião de diversos psicólogos, educadores e especialistas em comportamentos humanos para tentar explicar tal fenômeno e as suas sequelas naqueles que acabam passando por alguma situação traumática causada por ele. Também são entrevistados homossexuais que sofreram algum tipo de violência e até mesmo detentos do corredor da morte que, após duras repressões sofridas durante a infância e em suas próprias casas, começaram a desenvolver comportamentos violentos.
Mesmo com algumas opiniões contestáveis e a apresentação de dados que necessitam de checagem, é inegável que o filme tem um papel social muito importante na tentativa de conscientização dessa condição tão marginalizada e ignorada pelas pessoas em geral. O machismo é sim um fator determinante e nocivo na vida dos jovens e deve ser combatido a todo custo.