“O futebol é uma ardente paixão; paixão imperial de um planeta maravilhoso no qual o Sol nunca se põe. Ontem, como hoje, os homens vêm de todos os recantos, de todas as luas trazendo as mãos livres para os acenos de fraternidade. O futebol cantará sempre em ninho de guerra para louvar a paz. A bola do jogo, um símbolo: emblema da vida que flui pelos templos esportivos levando consigo o próprio coração do homem. Todos os corações do mundo.”
A Copa do Mundo de 1994, disputada nos Estados Unidos, desperta forte memória afetiva nos que tiveram a oportunidade de acompanhá-la à época, por diferentes motivos: o tetracampeonato de uma seleção brasleira desacreditada; os uniformes clássicos; a presença de craques do calibre de Romário, Baggio, Hagi, Stoichkov, Milla e Matthaus; os históricos gols de Al-Owairan e Yekini e o escândalo de dopping de Maradona estão entre os elementos que fazem o torneio ser tão marcante para os apaixonados pelo esporte.
E graças à tradição da Fifa de documentar a sua principal competição em filmes oficiais os fãs de todas as idades podem conhecer mais sobre cada edição. E, para muitos, Todos os Corações do Mundo (Two Billion Hearts) é a obra-prima da lista, por motivos mais do que justificados.
Já eficiente em sua introdução, que coleta múltiplos depoimentos de cidadãos comuns dos Estados Unidos para demonstrar o impacto daquele evento em suas vidas (que vão desde a empolgação com a realização da Copa em casa até o total desconhecimento sobre o soccer), o filme estabelece desde cedo o tom sensível e humano que o acompanhará pelos cerca de cem minutos de produção. O olhar atento do diretor Murilo Salles permite até uma observação inteligente sobre as diferentes realidades norte-americanas: em determinado momento, a câmera mostra uma mulher negra comentando sobre como a população de seu bairro gosta do esporte, e pode-se ouvir uma sirene ao fundo, que inclusive tira sua concentração, para, logo em seguida, cortar para uma família branca cujo depoimento se dá em um ambiente de absoluta tranquilidade, deixando claro o contraste entre os cotidianos de cada vizinhança.
Salles também acerta na estrutura do documentário. Em vez de seguir cronologicamente a evolução da Copa, o longa vai e volta no tempo, acompanhando a campanha de diferentes seleções, seguindo uma dinâmica que flui de modo muito eficiente e chega de maneira lógica até a partida final entre Brasil e Itália. Além disso, considerando a quantidade de milhares de horas disponíveis a serem selecionadas, o resultado final é um prato cheio que não decepciona.
A captura de tais imagens, aliás, é um dos pontos fortes da obra. Seja de torcedores, técnicos ou jogadores, é possível imergir naquele universo e compreender sua importância e as paixões que desperta nos envolvidos. E talvez a cena mais emblemática de Todos os Corações do Mundo seja a encarada de Roberto Baggio em Romário no túnel antes da entrada de campo, um daqueles típicos momentos tão espontâneos que não alcançariam o mesmo efeito se fossem combinados.
No vídeo abaixo, Salles fala um pouco sobre como foi captar aquele instante:
Também é fundamental o trabalho de montagem de José Rubens Hirsch, com transições e cortes hábeis que mantêm a história em um ritmo ágil, culminando em uma partida final que, aliada a uma trilha tensa, transforma o embate do Rose Bowl em um verdadeiro thriller de roer as unhas.
Contando com narração do ator Liev Schreiber (e de Antônio Grassi na versão brasileira), o roteiro também é eficiente, sendo ao mesmo tempo instrutivo e conciso. O monólogo que abre esse texto, e que antecede a final, resume bem o espírito de um filme que não só documenta um evento esportivo da maior importância como captura magistralmente sua essência e os efeitos marcantes que despertou em seus espectadores.
Historiador que acredita que a vida fica mais fácil quando vamos ao cinema.
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