Tim Burton é considerado por muitos um cineasta excêntrico. Ele é dono de uma estética fílmica bastante particular e, na obra em questão “Sweeney Todd: O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet”, se utiliza, entre outras coisas, de tons pálidos berrantes – que chegam a fugir da aparência humana e traduzem muito bem o contexto e os contrastes do filme.
A história do filme provém de um musical da Broadway, adaptado para o cinema. Nesse tipo de gênero, a sincronização da trilha sonora com a imagem é fundamental. A música normalmente é um elemento construtivo para a narrativa, porém, em um musical – onde os diálogos são constituídos basicamente por canções – ela obviamente é mais do que isso: é a linguagem dos personagens. Dessa forma, a entonação das vozes, o ritmo e o timbre muitas vezes se tornam mais importantes do que a própria construção das orações, deixando aberto o caminho para a licença poética.
Outro elemento que se destaca é o figurino, que com sua riqueza de detalhes, mostra como cada roupa é pensada no sentido de representar – e apresentar – o personagem. O traje ilustra perfeitamente o conceito do filme e o caráter de seus intérpretes: decadentes, sombrios e depressivos, sem esquecer o humor negro característico de Burton.
Na fábula, Sweeney Todd (Johnny Depp) é o barbeiro Benjamin Barker, feliz com sua amável esposa e linda filha. No entanto, como na maioria dos filmes de Burton, a inocência é colocada em choque com seus violadores e, mesmo que a história trate de um romance, a obra é pervertida por algo sombrio. Nesse caso, a felicidade do casal desperta o desejo e a inveja do poderoso juiz Turpin (Allan Rieckman), que se apaixona por Lucy (Laura Michelle Kelly).
Vendo que não tem a mínima chance de ser correspondido por aquela mulher, Turpin manda prender Benjamin sob falsas acusações, para fora de Londres, na esperança de ter o caminho livre até o coração de Lucy. No entanto, a moça não corresponde a seus sentimentos; e o juiz, cego de ódio, a atrai para uma festa em sua casa, a estupra na frente de todos e ela é dada como morta, culminando no escárnio total da família de Barker. Turpin, por sua vez, toma a criança Johanna Baker, filha do casal, como sua protegida e passa a nutrir por ela o amor que sentia pela mãe da garota.
Isso é contado como um flashback, e demonstra que em um filme o tempo é totalmente manipulável. O período, imaginário ou real, se sobrepõe e se confunde, e é aí que encontramos a percepção de um acontecimento passado sobreposto ao instante presente, como se pode entender através das palavras de David Bordwell (1986).
No decorrer da trama, anos se passam, e ao cumprir sua injusta pena, Barker, junto com um jovem marinheiro, volta para a cidade totalmente transformado pelo ódio e desejo de vingança. Ele retorna à Rua Fleet, onde morava antigamente com sua família, para iniciar seu plano de vingança. Lá, ele acaba por encontrar uma importante aliada: a Srta. Lovett, dona de uma loja de tortas e do cômodo onde será a nova barbearia.
Enquanto não consegue concretizar sua revanche, Todd e a Srta. Lovett percebem que não só o juiz, mas todos daquela cidade eram maus e imundos, e, acreditando fazer justiça, dão início a uma matança bizarra para garantir carne fresca para suas tortas. Os clientes que entravam na barbearia eram assassinados à sangue frio, por navalhadas, e mais tarde virariam recheio da iguaria. Em pouco tempo, os pratos se tornaram um verdadeiro sucesso na Londres do Século XIX.
Essa cena aponta todo o sentimento de revanchismo e frustração representados ali, e o espectador não sabe para que lado a história penderá. Esse pode ser o momento que encaminha para o clímax do filme, pois revela a tensão do drama, onde se aponta de maneira mais iminente a crise interna do protagonista.
É válido lembrar, também, que mesmo nas cenas que destoam dos tons acinzentados – me refiro quando a Srtª. Lovett se imagina num romance com o barbeiro – é possível perceber, através da maquiagem, iluminação, figurino ou expressão, certa infelicidade e melancolia dos personagens. Os sorrisos, por exemplo, nunca são completos, são comedidos. Ou seja, mesmo nos momentos bons, a felicidade nunca será algo palpável para Sr. Todd e Srtª. Lovett.
A narrativa do filme segue o modelo do cinema clássico hollywoodiano, ainda segundo Bordwell. Essa tese pode ser confirmada, entre outros fatores, pelo reconhecimento da unidade e da linearidade da narração da história.
O final é bastante trágico: o juiz Turpin não escapou da navalha do barbeiro, foi assassinado por Todd na mesma noite em que ele descobriu que sua esposa estava viva em todos aqueles anos de clausura pelos quais passou. Lucy, infelizmente, também acabou sendo uma de suas vítimas, já que ele não a reconheceu na pele de uma mendiga. E até a Srta. Lovett é morta por Sweeney Todd, pois ele descobrira que ela tinha conhecimento da situação de sua mulher e omitiu isso por desejá-lo.
A representação da morte, nesse filme, é inusitada e ao mesmo tempo esplêndida: o sangue usado é claramente artificial e toma referências do estilo “terror trash”. Mesmo assim, muitas vezes gera no espectador o sentimento de agonia, pois o diretor usa de primeiros planos e closes para reforçar esse choque. O sangue, ainda que artificial, jorra com intensidade e é capaz de transmitir ao expectador todo o aspecto sinistro do filme.
O desfecho final de “Sweeney Todd: O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet” representa algo recorrente em toda a obra: a banalidade da morte. O Barbeiro realizou uma carnificina, matando pessoas inocentes sem pensar duas vezes. Isso é um tanto irônico se lembrarmos que as matanças vêm intercaladas com flashbacks dos momentos nostálgicos com a filha Johanna Baker, que mal chegou a conhecer. A breve relação que o protagonista manteve com a criança, regada por amor e afeto e muita vida, é a única memória feliz que o Barbeiro carrega durante e após os assassinatos, e representa não só uma dualidade de seu caráter, mas do próprio filme.