O Escolhido na Saga Harry Potter

Utilizar-se do arquétipo d’o escolhido é bastante corriqueiro na ficção, especialmente no gênero “fantasia”. É um modo fácil de fazer com que o herói derrote um inimigo tido como invencível. Grandes franquias como Star Wars e Harry Potter aplicam a técnica em sua estrutura narrativa.

Mas afinal, no que consiste especificamente? Basicamente, em resposta a um mal comumente personificado, presente ou futuro, alguém é predestinado a derrotá-lo.

Via de regra a escolha não possui origem, sendo atribuída ao destino em si. Nesse sentido, a difusão desse escolhido ocorre, geralmente, por meio de uma profecia.

Ocorre que o constante uso desse mecanismo acabou por saturar o gênero, visto a pouca inovação. O arquétipo acaba encarado por muitos como um atalho para o conflito entre o protagonista e o antagonista da história.

Toda decisão feita pelo protagonista no decorrer da história perde o impacto uma vez que o conflito estava predestinado a ocorrer. O resultado é um universo determinista, onde apenas há a ilusão do livre-arbítrio.

Ainda, sua elevação ao patamar de “destinado” o torna menos relacionável ao telespectador em geral. Não se trata mais de um simples “alguém” que busca uma solução a problemas diversos, mas sim uma pessoa que está destinada a solucioná-los.

O foco da análise se dará na saga Harry Potter, abordando alguns pontos específicos que tornam a utilização do recurso diferenciada na história, ao menos até certo grau. Assim, há um desenvolvimento mais próximo à realidade. A análise contém spoilers.

Pois bem, na história acompanhamos Harry em sua disputa contra Voldemort, bruxo das trevas que busca a imortalidade e também subjugar bruxos e não bruxos. Ocorre que no quinto filme descobrimos que o confronto fora predito. Fomos apresentados à seguinte profecia:

 

Aquele com o poder de vencer o Lorde das Trevas se aproxima… nascido dos que o desafiaram três vezes, nascido ao terminar do sétimo mês… e o Lorde das Trevas o marcará como seu igual, mas ele terá um poder que o Lorde das Trevas desconhece… e um dos dois deverá morrer na mão do outro, pois nenhum poderá viver enquanto o outro sobreviver… aquele com o poder de vencer o Lorde das Trevas nascerá quando o sétimo mês terminar…

 

Voldemort toma ciência de parte da profecia por um servo e age com o intuito de extinguir a ameaça preventivamente. Suas ações, entretanto, apenas fizeram com que a profecia se tornasse efetiva. A tentativa não apenas foi falha como fez com que Harry tivesse acesso a certas habilidades que seriam vitais à sua empreitada.

O primeiro fator diferencial a ser levado em conta é que, segundo os critérios delimitados pela profecia, Neville Longbottom, outro estudante de Hogwarts, também preenchia os requisitos para ser “o escolhido”. Ao menos até Voldemort marcar Harry como seu igual[1].

Assim, a despeito da existência de uma profecia, seu efeito está condicionado à uma ação do antagonista. Isto é, ao dar importância à profecia e agir de modo a impedi-la, Voldemort acabou por concretizá-la.

Caso permanecesse inerte a profecia seria ineficaz. Desse modo, não foi algo imaterial como o “destino” que determinou a situação, mas sim as ações realizadas pelos envolvidos. Há importância nas decisões tomadas pelos personagens da trama.

Outro fator diferenciador é o claro simbolismo no fato da derrota do antagonista ocorrer devido aos seus próprios atos, ainda que indiretamente. A ascensão de Voldemort representa a ascensão de regimes totalitários centralizados na figura de um ditador.

O próprio objetivo do vilão, isto é, a busca de uma raça pura através do expurgo dos sangues-ruins traça um paralelo com a Alemanha Nazista. Assim, o tirano que garante o seu poder através da subjugação da população acaba por criar aquele que será responsável pela sua derrocada.

Por fim, outro ponto que ajuda a mitigar o clichê é o fato dos poderes que tornam Harry uma ameaça ao antagonista apenas se manifestarem quando ele o enfrenta. Desse modo, a distância que normalmente existiria entre o protagonista e outros personagens é reduzida. Inclusive, durante a saga, essa situação é destacada pelo próprio herói[2].

Desse modo, ao invés de elevar o status do protagonista para algo incompatível com uma audiência padrão, o filme se fez relacionável ao homem-médio, mostrando que não é necessário ter um nascimento especial alcançar a grandeza.

Tem-se, então, três fatores que nos ajudam a diferenciar o arquétipo utilizado na saga: diminuição do determinismo de uma profecia através da importância dada às ações dos personagens; simbolismo com regimes autoritários e as suas derrocadas e; balanceamento de poderes apropriado entre o protagonista e outros personagens da história.

Sendo assim, apesar de J. K. Rowling não ter desconstruído o arquétipo por completo, foi bem-sucedida em torná-lo mais moderno, cunhando o fascinante universo de magia como o conhecemos.

 

[1] Inclusive, é válido ressaltar que, caso Voldemort tivesse optado por Neville, Severo Snape teria permanecido leal à sua causa, de modo, ao menos a princípio, Dumbledore perderia seu agente-duplo.

[2] O maior exemplo desse é Hermione, companheira de Harry em sua jornada, que segundo o próprio protagonista é a melhor bruxa de sua idade.