Ovacionado em Berlim, “o processo” é uma verdadeira aula de política, um grito didático que esclarece sobre a maior crise democrática recente na história do Brasil de forma instrutiva, ao separar os eventos que culminaram no impeachment da presidenta Dilma Rousseff do maior cargo público do país ao utilizar apenas recortes dos momentos importantes, datando os fatos conforme vão ocorrendo, sem tentar manipular os eventos para qualquer um dos lados.
Ademais, o título do filme referido no primeiro parágrafo em letras minusculas é intencional pois, além de ser o logotipo do filme, desempenha uma função de se diferenciar de “O processo”, livro de Franz Kafka, que narra a historia de um homem que está sendo julgado sem saber a acusação enquanto o processo vai sendo conduzido sem esclarecimento nenhum para o acusado, culminando na sua condenação. A intenção da diretora ao estabelecer essa diferença é no mínimo irônica por causa da verossimilhança presentes em ambos os casos.
Sendo assim, o filme se inicia com uma introdução para situar o espectador, como se fosse um prefácio, anunciando que a candidata do PT havia ganho as eleições em 2014, estendendo o governo petista para 16 anos, e também notificando que a Operação Lava-Jato havia começado meses antes, com políticos dos principais partidos sendo acusados, como o atual presidente Michel Temer e o ex-Presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha, seguindo para uma imagem do Congresso e indo imediatamente para um dos momentos mais bizarros já vistos na televisão: a votação para a abertura do processo de impeachment.
Todavia, a diretora Maria Augusta Ramos dá o tom de seu filme com essa abertura ao optar por não identificar nenhum personagem que aparece em tela, dando um teor mais realista e objetivo a obra, como se o espectador estivesse assistindo uma reportagem, ou revivendo aquele momento grotesco, porém sem narrador ou comentarista, apenas a informação crua do fato. Não obstante, o longa não visa entreter o público, tanto que não possui trilha sonora, ele é seco e isso o torna mais impactante, como no momento em que o áudio de Sérgio Machado e Romero Jucá são postos na tela.
Apesar disso, o longa em nenhum momento tenta justificar o impeachment sofrido pela ex-presidenta ou isentá-la, pelo contrário, a narrativa do documentário é voltada para a equipe de defesa de Dilma, mostrando toda a formação dos argumentos utilizados para desmontar as acusações sofridas, em todas as suas minúcias, de forma precisa e fulcral no sentido jurídico, tentando desmantelar o que seria um “jogo de cartas marcadas”, fazendo alusão a uma infeliz ironia kafkaniana.
Embora a imparcialidade seja um dos pontos fortes do filme, ela também é um de seus pontos fracos, visto que chega a ser inocente afirmar que nenhum documentário é neutro, por mais que este tente se desvencilhar ao máximo disso, porém acaba funcionando de forma magistral como uma maneira de contar a história do lado perdedor, sem a quantidade inumerável de rótulos propagados por qualquer manchete sobre o assunto.
E, retornando para a parte didática do documentário, além de organizar os eventos cronologicamente sem tentar recortar e encaixar momentos na frentes de outros, o longa explica de forma clara as acusações que Dilma Rousseff respondeu, elucidando o conceito de pedaladas fiscais e esclarecendo o que é o crime de responsabilidade, de forma que até o brasileiro mais leigo no assunto possa compreender o que realmente ocorreu sem tirar conclusões precipitadas.
No mais, acentua-se ainda mais a fragilidade do processo de impeachment quando são mostradas as cenas da equipe de acusação e defesa, na qual Janaina Paschoal, a jurista contratada para argumentar a favor do processo, se esquece repetidamente dos crimes de responsabilidade e começa a discursar sobre moralismo, posicionamentos políticos e repulsa ao Partido dos Trabalhadores, enquanto José Eduardo Cardozo, o advogado da ex-presidenta, questiona se a defesa terá outro valor além do de ganhar tempo para a resistência política.
Também vale ressaltar que o longa não se esquece da polarização que ocorreu nas ruas durante o período, mostrando as manifestações da população intercalando em determinados momentos, porém não se esquece que o documentário é feito a partir dos bastidores de Brasília, ilustrando a todo momento com imagens da reunião do gabinete de defesa da ex-presidenta ou utilizando de imagens recortadas de momentos icônicos, como a já citada votação da Câmara dos Deputados.
Logo, “o processo” é um filme que desmembra os pormenores do inicio da maior crise política brasileira recente, retratando a história do impeachment da forma como ela entrou para a história do Brasil, sem falar que surge em um ano de eleições no país, o que o torna ainda mais importante para esse momento, visto que o debate político deve sempre ser feito por todos com o maior número de conhecimento possível, posto que em momentos como esses podem surgir pessoas com soluções imediatas prometendo ser a cura para tal momento. Porém o que todos devem ter em mente é a manutenção do Estado Democrático de Direito, não deixando-o enfraquecer e sucumbir a ideais inexistentes evocados por déspotas disfarçados de líderes. Um povo que não conhece a sua própria história estará fadado a repeti-la.
Apaixonado por cinema, amante das ciências humanas, apreciador de bebidas baratas, mergulhador de fossa existencial e dependente da melancolia humana.