O cinema sempre usou, em vários filmes diferentes, o mundo onírico. Os sonhos são uma ferramenta que os diretores costumam gostar, pois traz uma liberdade nas cenas que permite a inventividade, a ousadia e a abordagem nova de histórias já conhecidas.
Os sonhos também podem servir para aprofundar sentimentos, frustrações e vontades dos personagens principais, assim seu público conhecerá mais do protagonista, criando empatia e enxergando pelos pontos de vista do herói – ou heroína – os acontecimentos discorridos.
Esse caso descrito no segundo paragrafo foi como Ingmar Bergman utilizou o onirismo em sua obra. “Face a Face”, lançado no ano de 1976, continua sendo atual, justamente por conta de que os sonhos foram construídos não com efeitos especiais – como a grande maioria dos filmes de hoje – mas sim com movimentos de câmera e montagem. Claro que contar com um grande elenco também ajuda.
A projeção conta a história de Jenny – interpretada por Liv Ullmann – que decide passar um tempo com os seus avós, porque seu marido teve que viajar a trabalho e a mulher não queria ficar sozinha em casa, mas essa visita aos parentes aos mais velhos acaba se revelando uma jornada de autoconhecimento, quando ela fica sozinha em casa por um período.
O filme é inteligente ao usar movimentos de câmera, montagem e a cor para expor sentimentos da protagonista e acima disso, para deixar claro ao espectador o que é sonho, o que é uma alucinação e o que é real. Nunca o público vai ficar confuso com o que acontece na tela, devido à técnica ser tão bem utilizada.
A montagem do filme opta por dividir a obra em duas grandes partes. A projeção tem duas horas de duração, uma hora é dedicada à relação de Jenny com os avós, ao trabalho dela e aos compromissos que decorrem ou não de sua ocupação. A outra hora é exclusivamente interna, onde o sonho domina e é nessa parte do filme que realmente conhecemos a personagem.
Junto à montagem, os movimentos de câmera também mudam de acordo com a divisão de uma hora. Na primeira parte do filme, apesar de a câmera se mover consideravelmente, ela faz isso tomando certa distancia dos personagens, como se quisesse avisar ao público para não se aproximar agora, para se manter afastado, ao menos por enquanto, já que há momentos em que o zoom in é utilizado. Na segunda hora, a câmera acompanha Jenny de forma insistente, de maneira que sempre estejamos próximos da personagem, a intenção principal é quem assista sinta aquilo que a mulher sente, e mesmo que nunca tenhamos passado por nada similar ao que acontece com ela, essa estratégia funciona devido ao terceiro tópico que será abordado.
A cor no filme se faz importante para que o público perceba a mudança no comportamento de Jenny. No inicio da obra, as cores sóbrias como branco e bege são as que predominam, e notamos que assim como esses tons, a personagem é controlada, calma, inteligente. Na metade do filme, o que era branco passa a ser vermelho, e isso expõe duas coisas ao público, a primeira é que a protagonista foi de calma a agressiva, de controlada para descontrolada, e a segunda é que Jenny finalmente se conhece e decide expor isso usando cores novas, e levando em consideração que vermelho é uma cor que faz a pessoa sentir fome, denota-se que além de a personagem se conhecer, ela tem fome de algo, e esse “algo” depende da interpretação do público, pode ser da vida familiar, da morte ou da liberdade de tudo que a deixa presa.
Todas essas sensações, mudanças e nuances, são passadas com maestria por Liv Ullmann, possivelmente em uma das atuações mais difíceis de sua carreira, já que a personagem é tão complexa que da margem a diversos tipos de personalidade, e essas variações dão ao público uma mulher multifacetada que, seja por um aspecto, seja por outro, sempre se identificará com o espectador de alguma forma.
Assim, “Face a Face” é um dos filmes mais completos de Bergman, já que consegue abordar diversos assuntos usando apenas uma personagem durante quase todo o filme. Dando margem para que o público se veja dentro da projeção e que sonhe junto com Jenny, um dos melhores papeis de uma das melhores atrizes que o cinema teve o prazer de assistir.
Formado em Jornalismo e apaixonado por cinema desde pequeno, decido fazer dele uma profissão quando assisti pela primeira vez a trilogia “O Poderoso Chefão” do Coppola. Meu diretor preferido é Ingmar Bergman, minhas críticas saem regularmente aqui e no assimfalouvictor.com