Nos idos de 1809, no estado americano de Massachusetts, nasceu um dos maiores expoentes da literatura moderna de horror: Edgar Allan Poe. Célebres até hoje, as suas histórias sempre flertavam com o macabro e as suas descrições enervantes dos momentos de pavor chocavam os seus leitores, além de terem exercido grande influência em toda a literatura fantástica que se seguiu. A influência de Poe acabou ultrapassando a literatura e os séculos. Entretanto, foi no cinema que Poe encontrou as mais diversas traduções visuais e nenhum outro cineasta enveredou, e com tanto sucesso, pelas obras do escritor quanto o cineasta Roger Corman nos longínquos anos 60.
Roger Corman é hoje famoso por suas produções de baixo orçamento e de inegável verve trash. É dele uma infame versão para “O Quarteto Fantástico” (1994), que nunca viu a luz do dia. Assinou também a produção do clássico “Piranha”, de 1978, dirigido por Joe Dante (de “Gremlins”). Entretanto, na década de 60, Corman realizou para a AIP (America International Pictures) oito filmes baseados nos contos de Poe. Essa “franquia”, para usar uma terminologia mais recente, ficou conhecida como o “Ciclo Poe de Corman” e foi produzida entre 1960 e 1964, tendo como figura recorrente o ator Vincent Price como protagonista. Os filmes possuem predicados semelhantes e, ainda que alguns sejam bem irregulares, são importantes para a composição do cinema gótico de horror sessentista.
O primeiro longa do ciclo é “A Queda da Casa de Usher”, de 1960. Baseado no assustador conto homônimo, o longa tem uma excelente ambientação e uma exímia construção de suspense que explode num clímax tenso e arrepiante. Já o filme seguinte, “O Poço e o Pêndulo” é um pequeno passo para trás. Com uma direção menos inspirada, aparentemente realizada a toque de caixa, – até para os padrões do diretor – “Pêndulo”, apesar de curto, tem um pequeno problema de ritmo no seu segundo ato, ganhando fôlego perto dos seus minutos derradeiros. Dividindo a cena com Vincent Price, temos Barbara Steele, de “A Maldição do Demônio”.
Em 1962, seguindo o êxito de público dos dois primeiros filmes da série, é lançado “Obsessão Macabra”. Estrelado por Ray Milland, a obra é uma livre adaptação de “O Enterro Prematuro”, um dos mais claustrofóbicos contos de Poe. É um dos melhores filmes do ciclo, e o único a não ter Price no elenco. Contém uma assustadora atuação de Milland como Guy Carrell, um homem que morre de medo de ser enterrado vivo. Só um detalhe: Carrell sofre de catalepsia, condição que faz o indivíduo parecer morto devido à uma paralisia momentânea dos membros e músculos, embora ele fique consciente. Em seguida, chegamos a “Muralhas do Pavor”, uma antologia que reúne 3 episódios que condensam vários contos de Poe: de “O Gato Preto” a “O Caso do Sr. Valdemar”. Apesar do elenco espetacular (além de Price temos aqui Peter Lorre de “M – O Vampiro de Düsseldorf”) esse é um dos longas fracos do Ciclo. O primeiro e o terceiro segmentos são bons e possuem um razoável exercício de suspense, mas o segundo tem um humor tolo que destoa de todo o conjunto.
Um humor abobalhado e envelhecido é também o problema que acomete o 5º segmento do Ciclo: “O Corvo”. Levemente inspirado em das mais conhecidas obras de Poe, o longa reúne os mesmos protagonistas de “Muralhas do Pavor” no que seria uma espécie de autoparódia, onde Corman brinca com os elementos que veio desenvolvendo ao longo de suas incursões no universo de Allan Poe. O resultado nunca decola, não diverte e em muitos momentos até constrange. É o pior filme do Ciclo. Ciente do material anêmico que entregara, Corman parece querer retomar o horror raiz de “Queda da Casa de Usher”. Porém, dessa vez, Poe não será a única fonte dele.
“O Castelo Assombrado”, também de 1963, flerta com o horror de H.P. Lovecraft ao contar a história de um jovem que se depara com um horror ancestral ao passo em que tenta descobrir mais sobre um antepassado seu. Ainda que o resultado seja irregular, o filme começa muitíssimo bem mas derrapa num segundo ato moroso, “Castelo” é muito superior à “O Corvo” e ainda abriria caminho para os dois últimos e melhores exemplares do Ciclo: “A Orgia da Morte” e “O Túmulo Sinistro”.
O primeiro é baseado no espetacular conto “A Máscara da Morte Rubra”. Versando sobre um príncipe devasso e cruel que, medievo, promove uma festa dionisíaca em seu palácio enquanto o povo definha vitimado por uma peste, a chamada “morte vermelha”. “A Orgia da Morte” é a síntese do Ciclo Poe: dono de um visual deslumbrante e uma direção inspiradíssima de Corman, ainda traz Vincent Price em uma de suas melhores atuações. Para além das escolhas estéticas, Corman ainda encontra tempo para tratar com escárnio as classes dominantes, tratando a nobreza do filme como um bando de bajuladores acéfalos e dados a humilhações para a manutenção de seus status quo. É um filme belo e deliciosamente bizarro.
Fechando o Ciclo, temos “O Túmulo Sinistro”, de 1964. Adaptando o conto “Ligeia”, “O Túmulo” conta a história de um homem atormentado que não supera a morte da esposa. Após anos de luto, ele se apaixona novamente, mas engana-se quem acha que isso o fará esquecer a sua falecida. Em “O Túmulo Sinistro” Corman brinca com enquadramentos e movimentos de câmera, entregando uma mise en scene mais sofisticada, talvez a mais refinada de todo o Ciclo, utilizando a fotografia para aproveitar muitíssimo bem os cenários, criando um suspense atmosférico e mórbido, dono de um clímax verdadeiramente tenso e excitante.
Mesmo depois de tantos filmes, Edgard Allan Poe seria revisitado diversas vezes no cinema. Dario Argento e George Romero, por exemplo, dirigiram “Dois Olhos Satânicos” em 1990, que adapta “O Gato Preto” e “O Waldemar”. Antes, em 1981, foi a vez de Lucio Fulci (de “Zumbi 2”) de lançar a sua versão de “O Gato Preto”. Mais recentemente, “O Corvo” serviu de pano de fundo para uma história de serial killer num filme homônimo, estrelado por John Cusack, provando que o escritor continua fascinando e inspirando, o que atesta a atemporalidade de sua obra.