Nota do Filme:
A premissa de Uma Noite em Miami… é fictícia, mas também cheia de possibilidades. Numa noite em 1964, o jovem Cassius Clay (Eli Goree), que mais tarde se tornaria Muhammad Ali, derrota o campeão dos pesos-pesados Sonny Linston, no Miami Convention Hall. Ele então se reúne com mais três amigos, o ativista Malcolm X (Kingsley Ben-Adir), o cantor Sam Cooke (Leslie Odon Jr.) e o jogador de futebol Jim Brown (Aldis Hodge), para comemorar a vitória. Mas o que seria uma noite de festa num quarto de hotel, acaba se tornando um momento de reflexões sobre o papel da arte e questões raciais regado a sorvete de baunilha.
Baseado na peça homônima de Ken Powers, Uma Noite em Miami… marca a ótima estreia de Regina King como diretora. Ela, que já vinha de duas vitórias consecutivas em premiações do cinema e da TV (um Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante em 2019 por Se A Rua Beale Falasse e um Emmy de Melhor Atriz de Minissérie em 2020 por Watchmen), mostra que por trás das câmeras pode se sair tão bem quanto se estivesse na frente delas. Seu primeiro filme é atual, relevante e bem executado dentro do que se propõe.
A luta contra o racismo por quatro perspectivas diferentes
É no mínimo incomum imaginar ícones afro-americanos se reunindo num momento em que os Estados Unidos vive o auge da luta pelos direitos civis. Logo antes do título do filme aparecer na tela, Regina faz questão de quebrar as pernas do espectador justamente para contextualizar a história. Cassius Clay, por mais que tenha saído vencedor do embate que mudou a história do boxe, é incapaz de ficar na própria ilha por conta de leis de segregação racial; Jim Brown, o maior jogador de futebol americano da época, recebe dezenas de elogios de um amigo que não deixa negros, inclusive Jim, entrar em sua casa; e por aí vai. Tudo isso para mostrar que, por mais famosos, ricos e bem-intencionados que sejam, os quatro ainda são vítimas de uma sociedade que primeiro julga a cor de sua pele antes de qualquer um de seus feitos.
O que torna o filme ainda mais interessante é que, mesmo passando por preconceitos bem semelhantes, cada um dos personagens tem uma forma de enxergar e reagir a essas situações. E são esses diferentes pontos de vista que enriquecem as discussões que vemos na tela, pontuadas por um roteiro bem mais dinâmico do que aqueles que nos acostumamos a ver em adaptações de peças teatrais. Aqui não existem grandes monólogos com frases feitas e momentos inesquecíveis, apenas quatro amigos jogando conversa fora e expondo seus posicionamentos diante do atual cenário político.
Estreia bem-sucedida
E nesse ponto, a direção de King faz toda a diferença para que o filme não caia na mesmice nem se torne enfadonho. Ela não tem medo de incrementar a história com cenas ao ar livre e tem domínio absoluto dos momentos mais tensos, como aqueles de silêncio. Sua direção foca não só em enaltecer as interpretações dos protagonistas, mas, principalmente, em trabalhar as camadas de cada um, sem descaracterizar suas lutas. Num excelente equilíbrio entre a linguagem cinematográfica e teatral, a diretora consegue unir seus posicionamentos sem julgá-los, defendendo todos como necessários para a luta antirracista.
Se é verdade que uma boa direção é fundamental para extrair resultados satisfatórios das atuações, então King demonstra ainda mais talento. Os atores estão muito bem em cena, trabalhando no limite entre encarnar uma figura já conhecida e construir seu próprio personagem. Aldis Hodge está mais contido, com uma raiva muito bem guardada, de onde saem os melhores questionamentos. Já Eli Goree é o total oposto, extrovertido e um tanto imaturo, mas aquele que mais discute sobre usar sua voz em prol das lutas pela causa. Leslie Odom Jr., que foi indicado ao Oscar por seu papel como Sam Cooke, é aquele que mais gera conflitos por causa de seu posicionamento passivo sobre o racismo. Por fim, Kingsley Ben-Adir dá um show como Malcolm X, bastante firme em suas ideias e, em oposição à Sam, aquele que convoca os demais à militar.
Falta de impacto que causa indiferença
A dinâmica entre os quatro é muito boa, eles realmente parecem amigos de longa data e as discussões que surgem naquela noite do hotel não parecem ter vindo de hoje. Mas se tem algo que falta a Uma Noite em Miami… é mais peso dramático para que as mensagens do filme sejam mais duradouras na cabeça do espectador. É tudo muito envolvente e relevante no momento em que se assiste, mas falta certa agressividade para que, no fim, o público não se sinta tão indiferente. Por mais importante e necessário que seja, o texto e direção mais soft não são tão eficientes na hora de fazer deste um filme impactante do jeito que ele poderia ser.
Ainda que não seja o filme do ano, Uma Noite em Miami… retrata uma reunião que a gente nem imaginava precisar até que Regina King a trouxe para nós. É divertido ver a interação de figuras tão importantes, mas, ao mesmo tempo, é triste que o preconceito que eles tanto discutam ainda seja tão comum mesmo décadas depois. No fim das contas, o longa se destaca por ser a estreia de uma diretora que promete fazer coisas muito maravilhosas. Se logo de primeira ela já entregou um filme competente como esse, podemos imaginar o que ainda está por vir.
Jornalista viciada em recomendar filmes e revisora de textos recifense que vive escrevendo sobre cinema nas horas vagas.