Crítica | Um Cadáver Para Sobreviver (Swiss Army Man) [2018]

A maneira de demonstrar a empatia através da simplicidade ou o comprometimento através da complexidade não são características novas no cinema (ou na vida). A fórmula usada em Um Cadáver Para Sobreviver se distancia de ambas as colocações. A confusão aqui é germinada ao lado da dúvida e da histeria do imprevisível e estranho caminho tomado pelos personagens. Contudo, não se pode contar uma história dramática com esse formato tão obsceno e chamativo. Ou pelo menos assim o público julga diante das primeiras cenas memoráveis do longa. Perturbação, deslocamento, subjetividade, nada disso. Estranhamento, essa é a palavra certa para nomear os pesos nos pés do espectador. Antes que perceba, estará tão fiel a trama quanto ela desejou que você estivesse.

A trama busca aproximar a vivência de Hank (Paul Dano), um homem à beira do suicídio em uma ilha deserta, do imaginário cotidiano de desprendimento da vida e das coisas que fazem ela valer a pena. É com a introdução de Manny (Daniel Radcliffe) ao contexto narrativo que a história ganha uma significância enorme quando a sua representatividade encontra a auto-estima renovada do primeiro protagonista. É a partir da relação do homem delirante em esperança que uma jornada surrealista se inicia. O roteiro se usa dela para contar a dramática história que nunca aconteceu, mas nasce a partir dali. Personagens sem passado, sem introduções profundas ou contextualizações. Tudo é resumido a uma ilha deserta e diálogos bem fluídos que direcionam cada um dos atos a sua justaposição digna.

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Para acompanhar todo o processo evolutivo dos dois personagens diante do cenário preenchido por nada além de suas experiências, essa sinergia de diálogos faz uma curva gigantesca quando Manny, o cadáver, começa a falar e desenvolver-se por conta própria. Enquanto o filme brinca com a ideia da alucinação de Hank e a sua extrema força de vontade de voltar ao mundo após ter sido visitado pelo golpe do destino da descoberta do misterioso cadáver, os dois constroem uma amizade muito particular. Essa relação só pode ser decifrada com qualquer racionalização se for encarada da maneira alegórica. Tudo é teatral, rápido e as emoções dos personagens são tão voláteis quanto. A cada novo discurso de Hank sobre o mundo, a origem e o porquê de todas as coisas, o cadáver ganha um papel reflexivo que o faz mudar, mas sobretudo encará-lo como um agente dessa mudança.

A trilha merece um destaque especial pela forma como ela se desenvolve dentro do segmento sequencial que a trama dá ao novo a cada ato. A desenvoltura de uma letra livre e de poesia livre enaltece a mesma proposta simples que mancha todo o filme. São nessas oportunidades de admiração lírica que o público consegue encontrar o primeiro grau de real empatia com a obra, ou pelo menos com a proposta não tão passiva dela. Com a conquista musical importantíssima sendo assegurada, passa a existir aqui um relaxamento claro quanto a essa etapa da produção. A composição não precisa ser épica, triste ou extremamente volumosa em um clímax de aventura. Tudo que precisou foi ser sincera. Tão sincera quanto o significado de Um Cadáver Para Sobreviver.

Não poupando esses diálogos vitais para o bom andamento da narrativa, o filme ainda experimenta fórmulas novas de transição de cenas enquanto se banha no mesmo estranhamento insistente nas doses certas. É nessa falta de lógica e descompromisso que o espectador cai na imprevisibilidade e é tentado a descobrir um eixo lógico para tudo. Ao fazer isso, nos colocamos na posição das pessoas sobre quem tanto os protagonistas discursam. Ambos ali, isolados de um mundo e uma convenção de comportamentos e qualquer dialética aceitável,  divagam sobre a natureza do ser humano e como o próprio foi capaz de se proibir tanto sobre tudo ao mesmo tempo que pode se libertar com o próprio nada. A jornada do filme é longa, rastejante e recheada de momentos memoráveis e citações bem desenvolvidas dentro do drama que mostra a cauda em igualmente imprevisíveis aparições de novas experiências.

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Leva um tempo para se acostumar com a estranheza do filme. O particular de sua abordagem convence só com a sua primeira metade. É fácil se habituar e se encantar com os protagonistas e suas capacidades dentro da tão secundária luta pela sobrevivência. Aliás, sobreviver em Um Cadáver Para Sobreviver é uma desculpa esfarrapada para alongar a jornada dos personagens. Não existem situações realmente desconfortantes no contexto extremo de uma vida por um triz. Nada de caminhadas que doam os pés enquanto um homem é levado nas suas costas ou vômitos provocados por uma bactéria vinda de uma comida estragada. Se pudesse ser comparado a um líquido em um copo, o filme seria calmo, mas efervescente.

Com a grande virada trazida próxima a conclusão do filme, a narrativa passa a se acimentar naquilo que a fundou desde a primeira tentativa de Hank em suicidar-se. O confronto com o fim da jornada chega a ser nostálgico para quem se apegou ao desenvolvimento dos personagens. Ainda que um filme injustamente curto para um que conseguiria compreender além facilmente com a sua história sem qualquer obrigatoriedade de ser rapidamente concluída, essa sensação é bem expressa pelos diretores. O fim dos personagens carrega a resposta para o que tudo aquilo representou. Já como alegoria declarada, Hank é, no fim, o grande real protagonista. Manny, um coadjuvante poderosíssimo (em qualquer sentido aplicável).

O caráter teatral é o que mais ganha com isso. A mensagem longa, crua e explosiva demonstrada em uma alegoria sem escrúpulos. Um Cadáver Para Sobreviver é capaz de emocionar enquanto diverte e vice-versa. Sua irresponsabilidade em tecer uma narrativa dramática pesada e ultra-criativa confirma que a simplicidade ainda é decisiva em produções assim. E são estes pontos que garantem que o filme não se comprometa em sua tentativa inovadora, mas que se agarre nela como armadura. E nada consegue ultrapassá-la. Não importa o quão estranho ou técnico seja.