Crítica | Soul (2020)

Nota do Filme:

Uma das cenas mais bonitas do clássico Asas do Desejo, de Wim Wenders (1987), é quando o anjo Damiel, interpretado magistralmente por Bruno Ganz, experimenta sensações humanas pela primeira vez – como sentir o cheiro de café –, sendo que a doçura desses momentos reside na satisfação de Damiel em aproveitar momentos banais e cotidianos. Pois bem, em Soul, a nova animação da Pixar, são justamente tais momentos que concentram o peso dramático da narrativa, e o resultado é igualmente notável.

O talentoso pianista Joe (Jamie Foxx) trabalha em uma escola como professor de música para pré-adolescentes. Constantemente frustrado com a falta de interesse de seus estudantes e ansiando por uma oportunidade de alavancar sua carreira como artista profissional, vê sua grande chance pintar quando surge o convite para se juntar a um quarteto. No entanto, horas antes da primeira apresentação, o músico sofre um acidente e, à beira da morte, vê sua alma deixar seu corpo e partir a caminho do além. Desesperado com a situação, Joe passa a fazer de tudo para retornar à Terra e realizar seu grande sonho, contanto para isso com a ajuda da elétrica 22 (Tina Fey), uma alma que ainda não nasceu (e que não tem interesse em fazê-lo).

A partir dessa premissa, o diretor Pete Docter (responsável pelos tocantes Monstros S.A., Up: Altas Aventuras e Divertida Mente) explora conceitos complexos de maneiras criativas e didáticas, o que é mais do que importante, considerando que boa parte de seus espectadores é formada pelo público infantil, contando para isso com o auxílio de uma habilidosa equipe técnica que compõe um universo fantástico que é ao mesmo tempo intrigante e autoexplicativo.

E claro, em se tratando de uma produção da Pixar, não poderia deixar de ser mencionada a riqueza dos detalhes das animações, algo que já é de longa data uma marca registrada do estúdio. Seja nos raios solares que entram pela janela da sala de aula, no suor dos músicos enquanto estes performam, ou nos dedos de Joe durante um solo, os efeitos são preciosos e tornam o longa uma experiência visual das mais agradáveis, o que é complementado pelo excelente design de produção, que combina eficientemente a paisagem urbana de Nova York com o mundo pós-vida (o fato de a escada que leva as almas para a “próxima etapa” ser similar às teclas de um piano, por exemplo, é de uma preciosidade ímpar).

Além de todos esses pontos positivos, Soul ainda funciona como uma bela carta de amor ao jazz, reverenciando o estilo musical e seus expoentes sem chamar a atenção em demasia para esse fato a ponto de atrapalhar o enredo (sim, La La Land, estou olhando para você). Destaque para a cena em que Joe tira o chapéu involuntariamente para uma parede na qual se encontram múltiplos quadros com lendas do gênero.

Honrando a tradição da Pixar de criar histórias que emocionam e divertem, cativando assim adultos e crianças na mesma medida, Soul é um lindo conto sobre como é possível viver intensamente aproveitando as pequenas coisas da vida, sobre como as reações às nossas sensações ajudam a construir quem somos, sobre generosidade, e sobre como a memória desempenha um papel fundamental em nossas trajetórias.