Nota do filme:
Entre 1930 e 1950, a Universal inaugurou a era do cinema falado com a criação do primeiro universo compartilhado numa série de filmes, conhecida como Universal Monsters. Depois do sucesso de O Corcunda de Notre Dame (1923) e O Fantasma da Ópera (1925), o estúdio apostou na adaptação de outras histórias clássicas de horror, entre elas a de Drácula, escrita por Bram Stoker e, então, protagonizada pelo grande Bela Lugosi, cuja performance se tornaria uma referência canônica do vampiro clássico elegante que se alimenta de sangue inocente, não pode sair na luz do dia e nem entrar em lugares sem ser convidado.
A poucos anos de completar um século desde o lançamento deste famoso Drácula de 1931, o estúdio resolve tirar da gaveta a ideia de uma continuação direta do clássico, desta vez focando a história em Renfield, o corretor de imóveis que se tornou servo do conde mais perverso da literatura. E assim nasce Renfield: Dando o Sangue Pelo Chefe, um filme divertido e bastante sangrento sobre a revolta do servo contra seu mestre depois de (finalmente) se descobrir num relacionamento de trabalho nada saudável.
Não é necessário assistir o filme de 1931 para entender o de 2023, mas se você já tiver assistido a experiência é bem mais interessante, principalmente pela oportunidade de comparar as performances de ambos os Renfields (antes, Dwight Frye, e agora, Nicholas Hoult) e Dráculas (antes, Bela Lugosi, e agora, Nicolas Cage). O longa faz um ótimo trabalho na hora de unir as duas pontas da história e, com muita rapidez, já estabelece as angústias de seu protagonista, preso a um chefe que não o mantém cativo apenas pelas ameaças de morte, mas, principalmente, porque usa de artimanhas tóxicas para torná-lo cada vez mais codependente.
Drácula é conhecido por sua personalidade sedutora e cativante, então fica fácil entender como ele manteve Renfield preso todos esses anos. Como o bom narcisista que é, o vampiro não deixa de afirmar o quanto seu servo é importante para sua sobrevivência e de seus planos, mesmo que nunca o trate com o respeito que merece. É assim, com palavras doces e convenientes, que Renfeild se vê preso numa dinâmica tão tóxica quanto a de muitos relacionamentos que vemos por aí e essa base é um excelente começo para a construção da história, uma pena que o enredo simples é tão subestimado em Hollywood.
Achar que precisa de muitos subplots para contar uma história mais “trabalhada” é um erro amador que acomete a grande maioria dos filmes que encontramos por aí, principalmente aqueles que se levam tão a sério quanto Renfield. Como o filme ganharia se deixasse parte do peso de lado (lê-se a subtrama sem sal protagonizada por Awkwafina) para dar, de fato, vazão a todo o gore e humor escrachado, a exemplo do ótimo O Que Fazemos nas Sombras, de Taika Waititi. Ao invés disso, ele prefere ficar em cima do muro entre o horror e o humor, no fim das contas pendendo para uma trama de Sessão da Tarde com diálogos tão pobres que não fazem jus ao grande potencial que tem em mãos.
O texto se enrola e perde a noção em muitos momentos, mas o ingresso ainda se paga, sobretudo pela atuação de Nicolas Cage que é, de longe, a melhor coisa no filme. Vale a pena conferir o quanto ele parece estar se divertindo na pele do vampiro altamente inspirado nos trejeitos de Bela Lugosi e até de Christopher Lee, que também deixou sua marca interpretando Drácula diversas vezes a partir de 1958. O vampiro de Cage é assustador e afetado o suficiente para render boas gargalhadas, um desempenho tão bom e equilibrado que só lamentamos a quantidade de tempo que a história perde focando em personagens desinteressantes.
O roteiro está tão prejudicado que nem Awkwafina, uma atriz com um timing cômico invejável, consegue ser bem aproveitada. Ela interpreta uma policial subestimada por tentar (sempre em vão) se vingar de uma família de mafiosos que matou seu pai. Renfield não só tem problemas em desenvolver a personagem de forma satisfatória como consegue deixar Awkwafina tão travada que sua presença se reduz a algumas poucas piadas e um olhar constante de poucos amigos. Entre um Nicolas Cage que rouba a cena e uma Awkwafina que nem aparece, resta a Nicholas Hoult uma presença mais neutra e operante.
O gore é bem-utilizado e as doses cavalares de sangue trazem personalidade para a história, mas as subtramas confusas feitas para impressionar só afastam ainda mais o espectador. O humor tem um espaço muito importante, mas toda vez que ele, de fato, poderia brilhar, o roteiro resolve dá uma brecada sem sentido que tira toda a graça. Renfield: Dando o Sangue Pelo Chefe, que estreia nesta quinta-feira (27/05), é divertido apesar dos seus muitos defeitos, só é um filme mais bobo do que poderia ser, justamente porque se perde em decisões ruins. Sorte que Nicolas Cage (quem diria!) vem para salvar o dia e fazer valer o ingresso.
Jornalista viciada em recomendar filmes e revisora de textos recifense que vive escrevendo sobre cinema nas horas vagas.