Nota do filme:
Na concepção de um bom mistério, todos os personagens são devotos de uma responsabilidade única para uma grande reviravolta na trama. Em Os Outros, a boa atuação do elenco em seus respectivos papéis promove a grande catarse final de choque e solidez narrativa. É construído na colaboração do longa multinacional uma atmosfera já arcaica dentro do gênero, mas ainda não tão explorada quanto deveria para a concepção que temos hoje. É explorando o terreno tímido do suspense desta temática em 2001 que Amenábar dá cabo de um modelo a ser seguido pela indústria nos anos seguintes. Barateando efeitos e supervalorizando a ausência do mesmo recurso, o diretor consegue equilibrar o inesperado com o coerente de maneira singular e sem atropelos para a trama. Caminhando devagar em toda a progressão do roteiro, Os Outros alcança subidas constantes e o clímax final é tão recompensador quanto memorável. Contudo, dentro do bom uso de luz, temática e na apropriação de um direcionamento genial inesperado para a época, o longa ainda comete deslizes quanto a maneira de lidar com tão profundamente maturada qualidade.
Partindo da ambiciosa narrativa que muito remete ao conceito literário de suspense, o confinamento dentro da grande mansão auxilia aqui de forma única para o repasse da história. É nos corredores pouco iluminados e na inquietação causada pela presença de Grace (Nicole Kidman) que a introdução de toda a narrativa desperta o primeiro grau de interesse. A contextualização da mansão para o cenário de guerra distante ausenta de início a figura do pai, somando para a trama a importantíssima fragilidade emocional do trio familiar e a administrativa da casa em si. Na construção de um boa exploração do terror psicológico introdutório e que também desenvolve a dramática estória por boa parte de sua duração, Os Outros voa baixo e em detalhes, permitindo que o público sempre se situe e se coloque no lugar dos personagens como direto questionador de tudo. E nesse conflito de simplesmente questionar, há dentro da família residente as crianças Anne (Alakina Mann) e Nicholas (James Bentley), dualidades importantíssimas para os diálogos coordenados pela mãe e pelos criados introduzidos logo no início. Contudo, em muitos dos diálogos paralelos da mãe com os funcionários, certa artificialidade nasce em função das expressões e de alguma omissão de sentido dentro de algumas cenas. Parte disso é explicada mais adiante, já na finalização do longa, enquanto a outra metade se perde em cada uma dessas conversações. Talvez esse seja o calcanhar de toda a trama.
As crianças conseguem através das poucas conversas realmente estendidas e centradas reaver dogmas bíblicos e passagens específicas que se encaixam com a imersão que o roteiro tenta dar em suas minúcias. Essa veia para a construção do imprevisível que se dilui a medida que descobrimos suas personalidades, cresce e se afirma mais tarde em suas ações. Enquanto Anne se aproxima da real figura de uma irmã mais velha, que cresce e se distancia da infância, Nicholas ainda se preserva como imaturo e ainda indeciso em seguir totalmente as chamadas da irmã para o que há além de hipóteses e descrições do mundo que nunca viram. O que lhes priva do mundo além da casa e daquela ilha ainda é o vigilante cuidado da mãe. Com isso, os personagens infantis se diferenciam de crianças ordinárias pela privação da condição social. É aqui que a estória ganha espaço para abordar neles camadas mais ousadas de realismo, distanciando os dois de qualquer infantilidade exacerbada ou decisões que caiam no mesmo campo. Nesse caso, a repulsa à luz justificada pela mãe como uma doença alérgica serve como importante fator para a entrada do público em um mistério que é tão denso quanto parece ser, mas incrivelmente transparente em seu significado. E novamente, aqui as crianças agem como a principal engrenagem do roteiro.
O longa usa pouca propriedade em seus efeitos e cortes para surpreender. A natureza que já causa suspense dentro da mansão vem com a assimilação do roteiro e dos personagens, bem como a de suas próprias sensações transparecidas na tela. Já na abertura do filme é previsto uma perturbadora direção que a trama pretende tomar. O despertar da personagem de Nicole Kidman é cru, rouba atenções e depois é confirmado como uma das muitas entradas definitivas para a investigação do mistério pelo público. E no fim, é por esses efeitos barateados e pela captação única de Amenábar para o contexto da estória que o espectador se sente tão motivado quanto inconscientemente fisgado a aceitar e mergulhar nas questões que ali são apresentadas. A dormência causada pela fluidez da narrativa e pelas respostas tão constantemente soltas na tela só instigam mais ainda. Nessa profundidade apenas existem respostas certas, recurso proposital do roteiro para se credibilizar diante de todos os eventos de natureza aparentemente tão traiçoeira para uma conclusão do público. Contudo, é com essa paciência para impressionar que Os Outros não falha em entreter e simpatizar-se com qualquer um. Enquanto há um suspense, há um mistério que pinga em cada uma de suas aparições. Mérito completo da genial montagem final.
Focando nessa premissa de um roteiro instigante e que serve mais para esclarecer do que para despistar ou confundir, o longa inquieta em cada solução, principalmente nas que envolvem as personalidades finais. A partir da segunda metade, o trio de funcionários passa a representar uma incômoda distinção dentro da estória. Essa nova motivação que o roteiro os dá acaba sendo o mote para uma grande finalização longe de ser óbvia para a maneira como foi introduzida. Se constantemente analisada nessa exatidão, é possível sentir que a obra engana o público em certo grau para a maneira como trilha a sua finalização, mas isso não acontece, e é daí que ela tira a sua maior reviravolta ao colocar em jogo a própria sinceridade com que trata as menores dentro do tema. É destaque nesse ponto a atuação da Srta. Mills (Fionnula Flanagan) dentro do papel de babá e possível governanta dentro do que passa a representar um pouco depois. Levando consigo a liderança da tríade de personagens coadjuvantes principais, a personagem consegue até certo ponto carregar em cena a mesma inquietação que Grace traz à tona no começo do filme. Essa aura misteriosa de intenções e desejos mais omissos vira o longa do avesso pela sua metade, desconstruindo algumas possibilidades de sua conclusão até então. A utilização desse recurso foi tão necessária quanto simples, já que naturalmente um roteiro como o de Os Outros não poderia cair em monotonia e incerteza absoluta.
Ponto principal e de justificativa de toda a trama, a conclusão é em todo o seu percurso anterior a motivação para todo o desenvolvimento do longa. Algo que, quando visto com mais calma, é estruturalmente incomum e ousado. Parte desse peso é compreendido nas incertezas e no que reside além delas. Na gradualidade com que o medo é demonstrado na narrativa, a obra escala para o seu ápice somente nos poucos minutos reservados para a finalização. São ali demonstrados os processos, os caminhos até eles e as diferentes soluções disponíveis dentro da grade do que é estrutural no roteiro. E tudo é tão equilibrado quanto harmônico para o técnico aqui dentro. Os enquadramentos e as cenas externas não pecam em impressão do que compõe a intenção do diretor para aquilo. Medo, dúvida e angústia são muito bem meramente retratadas com a câmera afiada. Os Outros sobrevive como uma mistura dramática e aterrorizante. Seu angustiante final ainda é memorável e exemplar para a intencionalidade de diretores dentro do gênero criarem uma marca tão semelhante quanto a que Amenábar deixou em sua criação.