Filme sobre anti-herói brasileiro empolga na ação, mas peca na criticidade
Baseado na HQ nacional homônima, em O Doutrinador, Miguel é um policial responsável pela investigação de desvio de dinheiro da saúde pública de seu estado (fictício). Após sofrer uma tragédia familiar indiretamente relacionada ao escândalo de corrupção, ele decide vingar-se dos políticos e empresários corruptos envolvidos no caso.
Para fazer justiça com as próprias mãos, no entanto, é preciso sujá-las, e nisto filme é bem realizado. A violência gráfica e as lutas bem coreografadas e dirigidas, são cruas em um estilo que remete a’O Justiceiro da Netflix.
O que não remete à obra análoga são as motivações do protagonista. Por conta de um primeiro ato mais acelerado do que o devido, os laços afetivos são forçados goela abaixo do espectador, o que ameniza a dor das perdas e, por consequência, não fundamentam as ações do personagem.
Ao menos Kiko Pissolato entrega uma performance eficiente que convence. O ator consegue dosar entre o pai doce, o policial determinado e o justiceiro ameaçador. Mesmo de máscara, é possível notar a preocupação com o trabalho corporal para parecer intimidador, além do físico parrudo, mas pela própria fisicalidade.
No elenco, destaco também Nina de Tainá Medina, a hacker que, forçadamente, funde uma aliança com o anti-herói. Carismática e multifacetada, é, talvez, a personagem que estabelece conexão com o público com mais facilidade. Natália Langes e Samuel Assis também estão bem fazendo, respectivamente, a mãe em luto e o policial inconformado, mas sensato, que se opõem à fúria do protagonista.
Nota-se uma preocupação estética do diretor Gustavo Bonafé em evocar com figurinos, planos, cenários e pela bela cinematografia a atmosfera quadrinesca que deu origem ao filme. Peca, contudo, na instabilidade de tom incômoda que acompanha o longa do início ao fim. O filme ora abraça um tom dramático sombrio, ora apela para saídas cômicas que soam apenas grotescas.
Erro mesmo é a abordagem rasa que faz do tema que pretende abordar: a política brasileira. Ao tentar não tomar lados – caso contrário, metade do público seria perdido – o longa escorrega em obviedades e senso comum. Aqui, a corrupção foi transformada em uma massa amorfa que, quase como uma entidade onipresente, se personifica nos vilões caricatos. Os antagonistas são descaracterizados ao se tentar representar um protótipo do que seria o político corrupto com amontoados de jargões óbvios e risadas maléficas pitorescas, tão genéricos que chega a doer .
Pela falta de interesse em provocar verdadeiras reflexões e tecer um discurso realmente crítico ao descaso político com a população, o filme fez de seu protagonista o reflexo da revolta individual do homem mediano punitivista regido por uma visão de mundo maniqueísta, que, sem saber porquê e para quem, branda contra tudo que está aí.
Na ingenuidade de não tomar posições ideológicas e políticas sem perceber que isentar-se já é se posicionar, O Doutrinador perde forças, e pela intertextualidade com os discursos polarizados das últimas eleições, talvez tenha estreado com o timing inadequado. Ainda assim, a produção é tecnicamente digna de blockbuster hollywoodiano e vale o ingresso, principalmente para aqueles que desejam fortalecer o cinema nacional de gênero.
Linguista, feminista, comunista de Iphone e debochada. Acredito que todo desentendimento é causado por confusão semântica e que 90% dos conflitos humanos podem ser resolvidos com diálogo. Especialista em procrastinação, melancolia e overthink.
Formei-me em Letras e no Cinema busco esquecer.