Nota do Filme :
“Portanto assim diz o Senhor: Eis que trarei mal sobre eles, de que não poderão escapar; e clamarão a mim, mas eu não os ouvirei.”.
Jeremias 11:11
Nós acompanha Adelaide Wilson (Lupita Nyong’o) e sua família, Gabe (Winston Duke), Zora (Shahadi Wright Joseph) e Jason (Evan Alex) em férias na sua casa de veraneio na cidade de Santa Cruz, Califórnia. Seu descanso, contudo, é interrompido, quando pessoas fisicamente iguais a eles invadem a sua residência e ameaçam as suas vidas.
Jordan Peele surpreendeu o mundo com o seu primeiro filme, Corra! (Get Out), o qual dirigiu e escreveu, tendo sido, talvez, uma das estreias cinematográficas mais bem sucedidas da indústria. Conhecido, anteriormente, por esquetes de comédia, rapidamente se tornou um diretor/roteirista conhecido no gênero do terror. A expectativa para o seu próximo trabalho, então, subiu a patamares dificilmente alcançáveis que, felizmente, foram atingidos.
No início, aparenta ser um clássico home invasion movie, entretanto, o diretor, conhecido pela subversão de gêneros, transita por eles com uma facilidade invejável, de modo a fornecer à audiência uma extensa variedade de temáticas. Dessa forma, Nós consegue transmitir uma mensagem interessante, bem como se tornar atrativo para uma ampla gama de espectadores, sem jamais abrir mão da tensão que fora tão elogiada em seu antecessor.
Nesse sentido, a metáfora das imagens e o controle narrativo do qual dispõe Peele irão, certamente, impressionar até os mais exigentes. Isto porque toda a temática é trabalhada com a devida calma e parcimônia. A dualidade da narrativa não se limita aos doppelgängers, pelo contrário, toca todos os aspectos da obra, seja por meio do seu incontável uso de reflexos, suas imagens sobrepostas e, até mesmo, as sombras como representações dos personagens. Tais fatores permitem que o longa seja revisto sob diversos ângulos diferentes. A duplicidade permeia a narrativa, deixando pistas no decorrer de suas quase duas horas de duração. Ao mesmo tempo, o conto de uma família, assolada por cópias de si mesma abre o roteiro para uma infinidade de interpretações. Afinal, como lidamos com as adversidades quando estas são criadas por nós mesmos? O medo do outro, por vezes, pode se mostrar menos útil que o medo de si mesmo, em uma clara alusão à necessidade de olhar para dentro de si mesmo. A crença comum de que “você é o seu pior inimigo” não poderia estar melhor representada que no enfrentamento de sua própria cópia.
Ademais, há momentos de descontração, que, de modo algum, dissipam a constante camada de tensão que a história contém. Ao contrário, a complementa, uma vez que se trata de uma situação tão intrinsecamente bizarra que, por vezes, é inevitável que se reconheça a sua estranheza. Neste ponto, brilha Winston Duke, responsável pela maior parte do alívio cômico. Ressalta-se que Shahadi Wright Joseph e Evan Alex, que interpretam os filhos do casal, também entregam trabalhos sólidas, sobretudo ao levarmos em consideração a idade dos atores.
Ainda, é impossível não elogiar a brilhante performance de Lupita Nyong’o. A atriz, cujo talento já lhe rendeu o Oscar de Melhor Atriz Coadjuvante – 12 Anos de Escravidão (12 Years a Slave) – por vezes é desperdiçada em papéis sem brilho. Todavia, em Nós, comanda todas as cenas com um carisma impecável. Ao mesmo tempo, na pele de Red (doppelgänger de Adelaide), evoca um terror natural, que irá arrepiar até o maior dos céticos. Quando a personagem fala, seus colegas de cena – e a audiência – não têm escolha, senão escutar.
A trilha sonora, tão importante às obras do gênero, eleva todo o material. Aqui, Peele repete a parceria com Michael Abels, feita em Corra!, escolha essa bastante acertada. A sonoridade do filme eleva a sua tensão de maneira exemplar, sendo complementada por músicas conhecidas, da qual se aponta o excelente uso de “F**k the Police”, da banda N.W.A.
O final mantém a qualidade, contudo, pode diminuir um pouco a empolgação dos ávidos por ambiguidades. Há abertura para interpretações, mas elas não irão se alongar como em A Origem (Inception) ou Aniquilação (Annihilation). Irá subsistir, entretanto, a forte necessidade de revisitar a história.
Dessa forma, Nós é um filme ambicioso, que dificilmente seria produzido, não fosse a estrondosa estreia de seu diretor/roteirista. Comparações com seu antecessor são inevitáveis, mas injustas. Com proposta diferentes, ambas as obras alcançam altos patamares, por mais que por meios distintos. Seu maior feito, porém, é mostrar que Jordan Peele não teve um reconhecimento exagerado, pelo contrário. Ao mundo resta apenas aguardar, ansiosamente, pelo seu próximo trabalho.
Carioca, advogado e apaixonado por cinema. Busco compartilhar um pouco desse sentimento.