Nota do Filme:
É realmente uma pena ver um projeto tão ambicioso quanto Não Se Preocupe, Querida ser ofuscado por algo tão vulgar quanto intrigas de bastidores. As polêmicas e “disse-me-disses” começaram no início das gravações, em 2020, com a saída de Shia LaBeouf do elenco e chegaram ao ápice na última semana, com o climão absurdo no tapete vermelho do Festival de Veneza. Todo esse falatório prejudicou a recepção do filme pelo público e está se tornando cada vez mais difícil desassociar um do outro. No final, resta a dúvida: será que Não Se Preocupe ficaria tão marcado por polêmicas se fosse um longa menos irregular do que está se provando?
Ambientado nos anos 50 numa comunidade no deserto da Califórnia, o longa tem como protagonista Alice (Florence Pugh), uma feliz dona de casa que parece levar a vida perfeita. Ela e o marido Jack (Harry Styles) moram numa casa digna de comercial de margarina onde, mesmo casados, continuam em eterna lua de mel. Alice passa os dias cozinhando, limpando e frequentando diversas atividades junto às demais esposas da vizinhança enquanto os maridos trabalham em “algo muito importante”. Tudo vai bem até ela começar a desconfiar de que existe algo por trás do modo como todos vivem ali, algo que o dono da comunidade, Frank (Chris Pine), não quer que saibam.
Não Se Preocupe, Querida é intrigante em roteiro e visual, um filme com grandes aspirações e decididamente disposto a encantar o público através das camadas de uma história que, no fundo, já sabemos para onde vai. Não é por acaso que ele se passa nos anos 50 e tem ares de The Stepford Wives. O longa trabalha muito bem os simbolismos, a simetria artificial e sufocante que praticamente berra que algo, de fato, está muito errado. A direção de Olivia Wilde sai ganhando na hora de apresentar este universo e inserir as rupturas que assombram os dias de Alice e os transformam em pesadelo. Seu grande problema foi propor discussões que poderiam ser aprofundadas na história, mas terminar apenas flertando superficialmente com todas elas.
Grande parte da expectativa em torno de Não Se Preocupe vem dos elogios que marcaram a estreia de Wilde na direção. Em Fora de Série, de 2019, Olivia conseguiu transformar uma história já batida sobre duas adolescentes que decidem farrear antes do fim das aulas num delicioso e original estudo de personagem. Neste segundo filme, fica clara sua intenção de repetir a dose e construir uma trama focada na protagonista e em suas percepções sobre a realidade, mas falta um certo dinamismo para que o filme consiga se desenvolver como thriller psicológico e faça valer as discussões que propõe. Roteiro e direção optam por olhar mais para os momentos em que Alice se desprende da realidade do que, de fato, para o que está por trás dela.
Assim, não é o suspense que se prejudica. Pelo contrário, ele é muito bem construído pelas pequenas bizarrices que acometem o dia a dia repetitivo da protagonista, pelos símbolos e simetrias que colocam à prova sua sanidade. Também a trilha sonora peculiar e constante de John Powell ajuda o espectador a sentir o incômodo da própria Alice, um desconforto da qual não consegue se desvencilhar. Porém o resultado teria sido mais satisfatório se os dois primeiros atos se preocupassem em trabalhar melhor o mistério da comunidade, se soltassem pistas para que o espectador tentasse juntar as peças ele mesmo. Infelizmente, todo o desenvolvimento do mistério é jogado para o terceiro ato de forma muito abrupta e o público termina chegando ao fim da história com a sensação de que faltou algo.
Não, não é o final aberto o problema, mas a forma como ele é construído: mais para provocar choque do que, necessariamente, uma discussão. Dessa forma, Não Se Preocupe é um bom entretenimento com uma história criativa e instigante, mas que se preocupa tanto com a estética (destaque para a excelente fotografia de Matthew Libatique) que deixa de lado a chance de tirar a própria trama da superfície e torná-la robusta, inteligente e inesquecível. O que acontece aqui é uma falsa sensação de “preencha as lacunas” quando, na verdade, era o próprio roteiro que deveria se encarregar de construir uma base sólida onde o espectador criaria suas teorias.
No meio de tanto potencial desperdiçado algo que não se joga fora é a atuação de Florence Pugh, impecável, como sempre. A atriz consegue explorar a personagem com bastante liberdade, principalmente porque o roteiro dá espeço e material para isso. O mesmo não pode ser dito dos demais personagens, todos subaproveitados para dar espaço à estrela do filme. As potenciais camadas de Frank, Shelley (Gemma Chan), Margaret (Kiki Layne) e até Bunny (Olivia Wilde), por exemplo, fazem falta no desenvolvimento geral da trama. O próprio Jack é um personagem que poderia ser interessante, mas é constantemente ignorado pelo roteiro. Uma decisão coerente apenas porque Harry Styles não sustentaria um papel que lhe exigisse tanto assim.
Não Se Preocupe, Querida, que estreia nesta quinta-feira (22), prometia ser um dos maiores acontecimentos do cinema em 2022, mas se afogou em tantas intrigas que, provavelmente, é por elas que deve ficar marcado. Talvez, se fosse uma produção menos irregular e explorasse melhor a potência de sua temática, poderia superar o falatório e se provar acima de tudo isso. O mais triste (e irônico) é ver um filme que critica a sociedade machista e patriarcal se tornar vítima de boatos e intrigas sexistas criados por este mesmo sistema opressor. No final, mais do que o próprio filme, foi o bafafá que escancarou o machismo e terminou evidenciando o quanto a indústria ainda lucra com desavenças entre mulheres (sejam elas verdadeiras ou não).
Jornalista viciada em recomendar filmes e revisora de textos recifense que vive escrevendo sobre cinema nas horas vagas.